quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Na Pila

«Shadows of a thousand years rise again unseen, Voices whisper in the trees, Tonight is Halloween!»
Dexter Kozen

««Houve uma frase que, de súbito, me incendiou a mente», escreveu [Terence Hanbury White]. Essa frase era a seguinte: «Regressou ao estado selvagem.» Nesse momento, fui assaltado pelo anseio de que o mesmo se passasse comigo. A palavra «selvagem» encerrava uma espécie de poder mágico que se aliou com duas outras palavras – «feroz» e «livre». Por trás da ressonância grandiosa de «ferox» alinhavam-se «sobrenatural» e «mágico», «etéreo» (…). Regressar ao estado selvagem


«(…) a morte era visceral e omnipresente, delimitada por formalidades cerimoniais. Quando, havia tantos anos, observava esses homens com açores a meterem faisões mortos no bornal, via uma desenvoltura que sugeria séculos de privilégios sociais e confiança desportiva.
E o vocabulário que aprendera nos livros distanciava-me da morte. As aves de rapina treinadas não apanhavam animais. Apanhavam presas. Apanhavam caça. Que termo extraordinário. Caça
Helen MACDONALD (2014: 185)


Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

O contraste entre a leitura que me acompanha, na viagem que estou a empreender, – A de Açor – e a região onde me encontro por estes dias é não só notório como gritante. Apesar de ter a plena consciência dessas percepções não serem, de todo, audíveis e das visualizações surgirem sob um cunho eminentemente pessoal e introspectivo, ademais de um certo ânimo sorumbático que não estará alheio a este dia de antepassados (defuntos!) ou vésperas do mesmo, estas – as percepções, reitere-se – não deixam de ser significativas. De resto, as pessoas com que me cruzo estão (ou assim parecem estar) manifestamente “noutra onda”.
Na verdade, poder-se-á afirmar, que essas percepções focam-se essencialmente na camada superficial, e mais evidente, do “real” mas não ignoram uma realidade muitíssimo mais antiga, ancestral, quase diria perene. Por debaixo do verniz pretensamente sofisticado do urbanismo kitsch e de outras banalidades turísticas encontram-se invariavelmente os alicerces profundos do locus: a terra, na sua significação alargada e holística, mas, também, na sua concepção concreta, terra-a-terra: a poeira de onde viemos e para onde vamos. Sob a actual gula dos anfitriões e dos comensais encobre-se a voragem dos seus antepassados pré-históricos que, à semelhança das aves de rapina, se empanturravam naturalmente; a diferença é que os humanos agora o fazem diariamente e antes o faziam para passar dias sem comida. Os exemplos da convivência simultânea de mundos diversos são inúmeros, tal como da sua interligação e/ou sucessão…
No percurso matinal que me levou até à Pila não vislumbrei aves de presa mas fui acolhido, pouco depois de começar, por dois corvos. Aqui, hoje, na caminhada até esse vilarejo, as rapinas seriam outras, pressentidas atrás da linha limítrofe da zona de tampão das Nações Unidas, que separa a República do Chipre da Turquia. Pila é dos mais antigos povoados do Chipre (remonta à Idade do Bronze) e o único onde coexistem os habitantes originais: gregos e turcos cipriotas. Conta com três igrejas e uma mesquita, sendo igualmente de destacar a existência de uma torre medieval. O curioso nome “Pila”, de origem grega (πύλη), significa “entrada”: provavelmente por constituir a única passagem para a planície de Mesaoria.
A breve caminhada em solitário, de cerca de três horas, acabou mais ou menos como se iniciou, num contexto surreal (sub-real), naquilo que é conhecido internacionalmente como a zona turística de Pila: uma espécie de Algarve cipriota fortemente descaracterizado. Aves de rapina “nem vê-las”, tal como floresta ou até coberto vegetal digno desse nome. Depois de milhares de anos de ocupação humana o que seria de esperar?! Mas surgem poderosas litologias e um mar que dispensa palavras, uma intensa e tocante luminosidade, o ar e indizíveis energias…
A Natureza Selvagem continua imponente e peremptória mesmo que aparentemente velada sob uma mistura de cenários de parques de diversões, zonas comerciais, habitacionais e industriais, ou esquecida em detrimento de realidades virtuais e tecnologias que já ultrapassaram a ficção científica! A Natureza Selvagem é a essência do tecido cósmico ou, por outras palavras, da matriz (matrix), daquilo que alguns também chamam “este mundo”. E é precisamente neste limiar da Roda do Ano, chamado “Samhaim” (“Halloween” ou outras denominações), que – segundo as velhas tradições – supostamente se proporciona a ligação entre os mundos, dos vivos e dos mortos, do Natural e do Sobrenatural.
A morte é tão ou mais naturalmente selvagem quanto a vida pode ser. Brutal, mesmo. É nestas poucas noites-portal que os sentidos se abrem e apuram a esse mistério tremendo. Descobrir-nos imóveis na escuridão, completamente absortos, à escuta. E, porém, não haver nenhum som, apenas um silêncio de morte… 

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)

Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MACDONALD, Helen. A de Açor. Alfragide: Lua de Papel, 2015, pp. 344. ISBN 978-989-23-3394-6

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