MEDI(es)TAR... E ANDAR EM SILÊNCIO
Pedro Cuiça © Plenilúnio Matinal (Península de Lisboa, 16 de Outubro de 2019)
Há dias e dias. E por muito que possa parecer, sendo que na verdade
não parece (e muito menos é), nem sempre são iguais. Tenho por hábito andar
todas as manhãs no processo de mobilidade, digamos ecológico (?), que me conduz
até ao local de trabalho, quando “estou de escritório”, e que consiste num
sistema misto: comboio e locomoção bípede. Poderia utilizar o Metro ou outro
meio de transporte, mas prefiro, regra geral, andar a pé.
Tal como no comboio aproveito geralmente para ler, sendo que há
dias que não o faço (espraiando a vista sobre o Tejo ou entretendo-me na
observação do entorno), também tenho por hábito empreender criativas e variadas
caminhadas em Lisboa (a que carinhosamente apelido de Lisbon Walks,
vá-se lá saber porquê!) que, para além de me conduzirem ao local de trabalho,
constituem invariavelmente uma forma excepcional de descoberta e de ligação à
cidade (e, curiosa e simultaneamente, a mim próprio). Ora hoje, para variar,
quando saí do comboio continuei a leitura de um pequeno livro, que iniciei no
começo da viagem, de olhos postos no mesmo (alheio à cidade), numa espécie de
peripatético diálogo silencioso entre o autor e os pensamentos que a leitura me
foi suscitando, passo-a-passo, num ritmo de marcha mais lento do que é costume.
Sobre esta (ou nesta) espécie de “meditação silenciosa”, de hoje, destaco (melhor
seria dizer, destaquei), para além do plenilúnio matinal que precedeu a leitura
e as cogitações resultantes, o seguinte trecho:
«Se imaginarmos que a civilização sempre tentou que o ser humano
fosse aliviado dos seus esforços físicos, é irónico que depois se sinta
obrigado a fazê-los. Escrevi certa vez: «Passamos o tempo a criar coisas para
não nos mexermos, carros para não termos de andar, controlos remotos para não
nos levantarmos do sofá, e depois pagamos um ginásio. Pagamos porque criamos
utensílios que nos permitem evitar actividades físicas. Usamos o elevador, vamos
de carro para o trabalho, lugar onde, durante oito horas, suamos para não ter
de fazer qualquer actividade física. E é exactamente por isso, devido a essa
extrema sedentarização, que nos vemos obrigados a mexer-nos. Para isso, basta
pagar por uma coisa que evitamos a todo o custo e pela qual trabalhamos tantas
horas diárias durante tantos anos: esforço físico. Passar essas oito horas
diárias num escritório acinzentado, sentados, e ainda pagar para fazer
exercício físico é uma excelente parábola da vida moderna.»
O esforço físico é levado por vezes ao extremo e chega ao ponto de
dar sentido à vida. Mostrar os abdómens definidos passou a ser uma maneira de
vencer os defeitos da sedentarização. Mas nem tudo é mau na sedentarização, e o
pensamento que, sem temperança, nos faz baloiçar entre um extremo e outro acaba
por ser risível.
Imaginemos:
Para quem não gosta de correr e de um estilo de vida saudável,
arranjei um espaço em que as pessoas não podem correr, não se podem deslocar
senão devagar e não mais do que uns metros quadrados, só podem comer fast
food e beber cerveja. Chama-se bar. Curiosamente é um lugar onde podem
conversar, rir, namorar, enquanto outros suam, bebem água e usam roupas de
licra.
Há lugares tão pouco saudáveis que podem fazer-nos sentar. Eu sei
que muitos de nós passam parte da vida sentados. Mas isto é um sentar
diferente, com qualidade. Essa qualidade vê-se simplesmente pelo facto de
muitas vezes ser acompanhada por cerveja, amendoins, tremoços e uma boa
conversa. Podia estar a correr? Podia. Mas sentado é mais fácil falar com a
Maria João e apaixonar-me por ela e mais tarde viver com ela. Sei que poderemos
um dia correr juntos, comer saladas de países exóticos, superfrutas, chia,
trigo-sarraceno, bagas milagrosas, mas é sempre bom lembrar que essa vida
saudável nasceu de uma vida muito pouco saudável: sentarmo-nos a conversar.
Porque agora o que fazemos é, depois, de uma corrida, sentarmo-nos juntos a
meditar em silêncio.» [CRUZ, 2019: 37-38]
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CRUZ, Afonso. O macaco bêbedo foi à ópera. Lisboa:
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019, pp. 80. ISBN978-989-8943-58-3
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