quarta-feira, 3 de julho de 2019

D'a Natureza Selvagem


Regressemos, mais uma vez, à bela prosa de Gary Snyder ou, dito de outra forma, à sua forte originalidade, através de poderosíssimas aproximações às origens, primais ou primevas. Afinal (ou a começo?), a busca de alguma palavra sábia plasmada n’A Prática da Natureza Selvagem (Antígona, 2018)...
  

© DR

Para os povos pré-agrícolas, os locais considerados sagrados, e aos quais se dedicavam especiais cuidados, eram obviamente selvagens. Nas primeiras civilizações agrárias, a terra cultivada de forma ritual, ou pertencente aos templos, era por vezes considerada sagrada. Os cultos de fertilidade dessa época não exultavam necessariamente com a fertilidade de toda a natureza, focando-se antes nas suas próprias colheitas. A ideia de cultivo foi conceptualmente alargada para descrever uma espécie de adestramento em formalidades sociais que garantiam o acesso a uma elite. Através da metáfora do «cultivo espiritual», um homem sagrado mondou da sua própria natureza o seu lado selvagem. Isto é teologia agrária. Mas mondar o lado selvagem da natureza de membros dos clãs Bos e Sus – ou seja, o gado bovino e os porcos – transformou gradualmente esses animais, que no estado selvagem são espertos e vigilantes, em indolentes máquinas de produzir carne.
Certos bosques da floresta original sobreviveram até aos tempos clássicos enquanto «santuários». Eram encarados com muita ambivalência pelos governantes da metrópole. Se sobreviveram, foi porque as pessoas que trabalhavam a terra ainda escutavam em parte o apelo dos antigos costumes, e porque ainda se transmitiam os saberes anteriores à agricultura. Os reis de Israel começaram a derrubar os bosques sagrados e os cristãos remataram o serviço. A ideia de que a «natureza selvagem» podia ser também «sagrada» reentrou no Ocidente com o Romantismo. Esta redescoberta oitocentista da natureza selvagem constitui um complexo fenómeno europeu – foi uma reacção ao racionalismo formalístico e ao despotismo do iluminado, uma reacção que invocou sentimento, instinto, novos nacionalismos e uma cultura popular sentimentalizada. Só em culturas muito antigas e centradas num lugar é que ouvimos falar em bosques sagrados, terra sagrada, num contexto de prática e crença genuínas. Parte desse contexto é a tradição dos comunais: a terra «boa» torna-se propriedade privada, enquanto a selvagem e o sagrado são partilhados.
[SNYDER, 2018: 108-109]

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Estávamos a circular de carrinha por uma pista de terra batida a oeste de Alice Springs, na companhia de um ancião pintubi chamado Jimmy Tjungurrayi. Enquanto rolávamos pela estrada poeirenta, sentados na caixa da carrinha, ele começou a falar para mim muito rapidamente. Estava a falar de uma montanha próxima, contando-me uma história sobre alguns wallabies que vieram para essa montanha no tempo do sonho e cometeram algumas tropelias com certas raparigas-lagarto. Ainda mal tinha terminado essa história e já estava a contar outra a respeito daquela colina ali, e outra ainda. Eu não conseguia acompanhá-lo. Ao fim de meia hora disto, compreendi que aquelas histórias eram para ser contadas a caminhar, e que eu estava a ser submetido a uma versão acelerada de algo que poderia ser contado vagarosamente, ao longo de vários dias de caminhada. O Sr. Tjungurrayi sentiu-se benevolamente obrigado a partilhar comigo um conjunto de saberes em virtude do simples facto de eu estar ali.
Então, evoquemos um tempo em que se percorriam a pé centenas de quilómetros, num passo acelerado e amiúde durante a noite, viajando de noite e dormindo de dia à sombra das acácias, e no qual essas histórias eram contadas em andamento. Nessas viagens com alguém mais velho, a pessoa recebia um mapa que podia memorizar, cheio de lendas e música, e também de informações práticas. Se partisse sozinho, podia cantar aquelas músicas e regressar. E talvez pudesse viajar para um lugar onde nunca havia estado, conduzido pelas canções que aprendeu.
Montámos o acampamento junto de um manancial chamado Ilpili, onde encontrámos alguns pintubis da região desértica circundante. O manancial Ilpili tem cerca de um metro de largura e quinze centímetros de profundidade, numa pequena depressão coberta de mato e onde abundam os tentilhões. As pessoas acampam a quatrocentos metros de distância. Num raio de dezenas de milhares de quilómetros quadrados, aquele é o único manancial que permanece com água em anos de seca. Um local cujo livre acesso de todos é garantido pelo costume. Sentados em volta de uma pequena fogueira, Jimmy e os outros velhos ficaram até tarde a cantar para nós um ciclo de canções de viagem, percorrendo um trecho de deserto em imaginação e através da música. Mantiveram uma batida rítmica constante fazendo entrechocar dois bumerangues. Entre uma canção e a seguinte, faziam uma pausa e trauteavam uma ou duas frases, debatiam brevemente as palavras da canção e recomeçavam de novo. Um acedia a deixar o outro começar. Jimmy explicou-me que eles têm tantos ciclos de músicas de viagem que é difícil lembrarem-se de todos, e que têm de estar constantemente a ensaiá-los.
Todos os serões começavam com a pergunta: «O que vamos cantar?», e a resposta era algo do género: «Vamos cantar a caminhada até Darwin.» Começavam e debatiam e cantavam, marcando sempre o ritmo com os bumerangues. (…) Os cantores paravam sempre que lhes apetecia. Eu perguntava ao Jimmy: «Até onde conseguiram chegar esta noite?» E ele respondia: «Bom, já fizemos dois terços do caminho até Darwin.» Isto pode ser visto como um exemplo, entre muitos, do modo como paisagens, mitos e informações eram interligadas nas sociedades sem escrita.
[SNYDER, 2018: 112-114]

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Na árida beleza das neveiras de montanha e dos glaciares nascem os riachos que irrigam os campos da agroindústria no grande Vale Central da Califórnia. A caminhada, passo a passo e respiração a respiração, de um peregrino do deserto por um trilho acima, até essas neveiras, carregando tido às costas, é um conjunto de gestos tão antigo que infunde uma profunda sensação de júbilo físico e mental.
Isso não sucede apenas a caminheiros, claro. Acontece também a quem navega no oceano, ou de caiaque em rios e fiordes, a quem cuida de uma horta, descasca alhos ou simplesmente se senta numa almofada de meditação. O objectivo é contactar intimamente com o mundo real, o eu real. O sagrado refere-se àquilo que nos eleva (não apenas aos seres humanos) dos nossos pequenos eus para o vasto universo mandala de montanhas-e-rios. A inspiração, a exaltação e a compreensão não terminam à porta da igreja. Enquanto templo, a natureza selvagem é apenas um começo. Não devemos insistir na singularidade da experiência extraordinária, nem esperar abandonar o pântano político e entrar em perpétuo estado de compreensão superior. O melhor propósito de tais estudos e caminhadas é podermos regressar às terras baixas e ver toda a paisagem à nossa volta – agrícola, suburbana, urbana – como parte do mesmo território – nunca inteiramente destruída, nem jamais inteiramente desnaturada. A terra pode ser restaurada, e os seres humanos podiam viver dela em números consideráveis. Enquanto caminhamos pelas ruas de uma cidade, o Grande Uro-Pardo caminha connosco, o Salmão sobe connosco o rio.
[SNYDER, 2018: 126-127]

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2018, pp. 256. ISBN 978-972-608-326-9



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