sexta-feira, 5 de junho de 2020

D'o Tempo



Na sequência do post anterior, publico na integra a terceira parte – D’o Tempo – da palestra Espírito Santo: O Tempo dos Lírios, que apresentei, a 31 de Maio – Domingo de Pentecostes –, no webinar O Espírito e a Terra, organizado pelo colectivo Irmânia.


Pedro Cuiça © ÁGUA – Colóquio Internacional Mãe Terra
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (15 de Maio de 2018)



«Ainda que as sombrias máquinas estejam a funcionar
Não se atemorize demasiado, amigo…
(…)
Quando os pedantes chamaram a nossa atenção
Para a fria mecânica com que os acontecimentos
Se viriam a desenrolar, as nossas almas disseram em surdina:
É possível, mas existem outras coisas…»

Prefácio ao Napoleão de Nothing Hill de Chesterton (1898) 
in O Despertar dos Mágicos
(PAUWELLS & BERGIER, 2008: 251)

Existe uma flor extremamente resiliente e bela que se chama Myosotis maritima: é endémica dos Açores e surge em comunidades costeiras esparsas, habitualmente nas arribas abaixo dos 50 metros de altitude. O seu nome vulgar é “Não-me-esqueças”. Habituei-me a ver qualquer coisa para além da sua singela aparência e das colorações contrastantes com as negras rochas onde se encontra. Não num simples olhar profano mas num esforço de ver o divinal, na poética do momento (multi)temporal, como que a querer arrancar-lhe os segredos da criação. Algo expresso de forma magistral no versejar de Frei Agostinho da Cruz: «Assi com cousas mudas conversando,/Com mais quietação delas aprendo/Que de outras que ensinar querem falando.» (LIMA, s/d.: 104)
A sensibilidade dos franciscanos, antecessores de Frei Agostinho da Cruz, promoveu, desde o século XIII, uma pioneira e revolucionária (de re-volare: voltar a voar) reintegração na natureza, a que não será estranha a importância dessa Ordem na difusão do pensamento de Joaquim de Flora14 (HENRIQUES, 1996: 17). A ideia profética do abade calabrês – tão cara a Luís Vaz de Camões, padre António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva – da Terceira Idade do Mundo ou do Império (quinto) do Espírito Santo15, deu azo a uma religiosidade vocacionada para a aceitação do mistério e não para os «catecismos ou credos» (GRAY, 2008: 275), aberta ao incompreensível, ao inesperado e ao maravilhoso. Designadamente ao maravilhamento face à natureza…
Para os portugueses, essa evocação da era do Espírito Santo acalentava a libertação e uma notória apetência para se impregnarem de/na natureza. O sentimento panteísta da natureza viva, de que tudo na natureza está animado, imbuído de uma fraternidade cósmica entre os seus componentes, reflexo profundo e primevo do inconsciente colectivo, revela a vocação mística dos portugueses que se traduziu até há bem pouco tempo (século XIX ou XX?) nas fontes santas, nos penedos da fertilidade ou nas mouras encantadas. É neste contexto que se torna manifesta, nesta actualidade pós-moderna, não só a premência da defesa das plantas e dos animais, dos rios e das pedras, mas também e sobretudo a promoção da vivência original (aquela que remonta às origens) do tempo mítico e do espaço sagrado. Dimensão psíquica da natureza ao estilo nilch’i (o Vento Sagrado) dos diné? Fernando Pessoa chamar-lhe-ia “transcendentalismo panteísta”, outros falariam de “panteísmo saudosista”, “naturalismo religioso” ou “religiosidade naturalista”.  Pouco importam as denominações, essa apetência crístico-pagã, bem mais antiga do que o franciscanismo, subsistiu até hoje, numa resiliência admirável e apesar de o Espírito Santo, que os joaquimitas aguardavam para breve, aparentemente não ter chegado!
Não há tempo, nem espaço, para abordarmos as importantes mudanças conceptuais que surgiram, mormente decorrentes do romantismo, do transcendentalismo de Concord, da ética da Terra – de Aldo Leopold – ou da ecologia profunda e da consequente ecosofia – de Arne Naess –, e que terão desembocado, curiosamente, na designada “Nova Era”. A New Age (termo cunhado nos anos 60 do século XX) (SANTOS, 2002: 151), esse caldeirão onde medra todo o tipo de abordagens ditas “holísticas”, “terapêuticas”, “espirituais”, “místicas”, “gnósticas” e/ou “esotéricas”, desde a mesa radiónica à meditação das rosas, do karma à leitura da aura, dos extraterrestres ao despertar galáctico, taças tibetanas, reiki, channeling, xamanismo de salão, biofeedback e geobiologia, entre outras extravagâncias. A extravagância, o insólito e o inesperado, o sincrético, o eclético e o heteróclito, que caracterizam esta Nova Idade, bem podem estar associados à anunciada Idade do Espírito Santo. Contudo, há que «não confundir a obra prima com a prima do mestre de obras»: a liberdade não é limitadora, a gratuitidade não é negócio (nas festas do Divino Espirito Santo “não há almoços grátis”, há banquetes), a simplicidade não é superficialidade kitsh, muito menos é trapaceira (trickster), e, muitíssimo importante, a natureza não é artificial (o sujeito não é objecto).
O misticismo pampsiquista e panteísta, antecipado por Antero de Quental, e particularmente e-vidente em poetas como Junqueiro e Pascoaes (SILVA, 2000: 94), (re)centra-nos no poético desiderato demandador do Espírito Santo através da natureza. Como referiu esse Grande Colosso que foi Agostinho da Silva: «estamos tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência: plenamente [sobre]vivemos no artificial» (SILVA, 1990: 69).  Para que o homem possa sair da abjecção em que se (des)encontra deve reatar a primordial e eterna aliança com a Mãe-Terra, através de um mergulho profundo na (sua) natureza e, se possível, numa imersão, à John Muir, nos lugares selvagens (wilderness) (DEVALL & SESSIONS, 2004: 135). Não se trata, todavia, este tropismo holístico, ao encontro da natureza, de um regresso, por recuo, mas de um avanço, por transcendência, a uma renaturalização (rewilding) futurista porque voltada para o futuro (MONBIOT, 2014: 10). Ademais, quando o pouco que se sabe ser o presente é já ele ser o futuro (PESSOA, 1986: 158). E o «futuro é sermos tudo» (ANES, 2004: 138).
Ainda existem locais que podem ser legitimamente denominados “ambientes naturais” (WILSON, 2007: 29), mas estão em vias de extinção! Bialowiezca Puszcza, entre as fronteiras da Polónia e da Bielorússia, contém o último fragmento que resta da floresta europeia primordial: “puszcza” significa “floresta primitiva” (WEISMAN, 2008: 21). A fragância que se escapa das folhas e ervas apodrecidas acumuladas durante milénios evoca as próprias origens da fertilidade (ibidem).  Mas ainda existem locais onde é possível descortinar um subtil odor a Paraíso, designadamente em áreas cuja convivência milenar entre o homem e o meio se fez sentir de forma harmoniosa, como é o caso do Convento dos (franciscanos) Capuchos em Sintra... Ou locais de esperança como Mon(te)santo, essa ilha florestada, rodeada pelo urbanismo da Grande Lisboa, que é a prova provada de que é possível renaturalizar.
Vivemos, sem dúvida, um tempo de transição e de excepção, sente-se dans l’aire du temps. É, sem dúvida, chegada a hora; talvez amanhã já seja tarde. É a hora de empreender a pacifista “guerra santa” do espírito (Lima de Freitas in DURAN, 1997: 15), do espírito do(s) lugar(es), do Grande Espírito, do Espírito Santo. É o tempo de evocações à Terra (DEVALL & SESSIONS, 2004: 118), de canções e danças de poder, de lançar a voz do tambor como oferenda ao Espírito do Mundo (NEIHARDT, 2000: 198). De ser poeta, de acção directa, como os diné, dizendo os nomes da terra, «porque esses nomes são bons de dizer» e, dessa forma, cavalgar no espírito (ABRAM, 2007: 159), pela paz e pelo bem de todos, humanos e não humanos, pela Mãe-Terra. É o tempo de meditar e de orar por Gaia16: a Terra viva e vivificante.
É também o tempo da coragem, da liberdade na renúncia e do sacrifício (o sacro ofício) de cada um se cumprir, ao exemplo de gigantes da cepa de Agostinho da Silva17 ou de Jaime Cortesão18. Lembremos que este, na sua intrépida maneira de viver e de morrer (faleceu em 1960), foi a enterrar, a seu pedido, descalço e com o hábito de irmão franciscano leigo, numa última expressão de amor a um ideal que sempre defendeu (SILVA, 2000: 35).
A tradição simbólica de Joaquim de Flora, e também de Jakob Böehme, vê no lírio a promessa da vinda do Lilienzeit, o Tempo dos Lírios, paraclético, que sucederá ao tempo crístico das rosas e ao tempo da “ira” paterna dos «espinhos e ervas daninhas» (DURAND, 2008: 94). O tempo dos lírios já chegou! Na verdade, sempre aqui esteve porque o Espírito Santo nunca nos abandonou. Nós é que temos de ir ao seu encontro. Tal como o singelo Myosotis, não o devemos esquecer.
Pedro Cuiça
Domingo de Pentecostes · 31 de Maio de 2020 · webinar Irmânia





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