Na sequência de
dois posts anteriores, publico na integra a segunda parte
– D’o Espírito – da palestra Espírito Santo: O Tempo dos
Lírios, que apresentei, a 31 de Maio
– Domingo de Pentecostes –, no webinar O Espírito e a Terra,
organizado pelo colectivo Irmânia. Hoje, precisamente passados sete dias, neste
que é o Domingo da Santíssima Trindade...
Pedro Cuiça © FOGO – Floresta Negra, Alemanha
(2019)
«O vento sopra onde quer;
ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde
vai.
Assim é todo aquele que nasceu do Espírito.»
São João in Novo Testamento
(Jo. 3-8) [AA.VV., 1975: 331]
As Festas
do Divino Espírito Santo, que culminam no dia de Pentecostes, apresentam uma
notável expressão, ainda hoje, nos Açores e noutras paragens da geografia
mundial10. Aí celebra-se a
libertação dos prisioneiros, o bodo gratuito e a coroação do Imperador-menino.
Aí celebra-se, a liberdade, a partilha e a vida plena, «o princípio de toda
a acção vital e verdadeiramente salvífica» (HENRIQUES, 1996: 16).
No
dia de Pentecostes foi quando os Apóstolos de Jesus viram, nas palavras de João
Evangelista, «aparecer umas línguas à maneira de fogo, que se iam dividindo
e poisou uma sobre cada um deles» (Act. 2: 3) (AA.VV., 1975, 415). Fenómeno
antecedido por «um som comparável ao de forte rajada de vento» (Act. 2: 2) (ibidem)
e de que resultou terem eles ficado «cheios de Espírito Santo» e
começarem «a falar outras línguas» (Act. 2: 4) (ibidem). Ficaram, certamente, inspirados…
Um
episódio precedente, mas igualmente marcante, associado ao Paracleto, refere-se
ao testemunho de João, desta feita o Baptista, responsável por «baptizar em
água» Jesus, sobre a visão do «Espírito Santo a descer do Céu como uma pomba»
(Jo.
1:32-34) (ibidem: 326). A associação do Espírito Santo ao vento e
ao “dom da fala” (tal como à simbologia do fogo e da água) merece uma especial
atenção11. Desde logo no que
concerne a segunda frase da Bíblia, mais precisamente do Génesis, sobre a
criação do mundo, que surge traduzida de duas formas aparentemente distintas consoante
as edições: «o Espírito de Deus movia-se sobre as
águas» (AA.VV., 1988: 25) ou «um vento impetuoso soprava sobre as águas»
(AA.VV.,
1996: 12). Como tantas outras
línguas antigas e tribais, o hebraico tem uma única palavra para designar
“espírito” e “vento” – a palavra ruah – e é por isso que existem essas
duas traduções (CRUZ, 2019: 65). Salienta-se
igualmente, neste contexto, a notável similitude da narrativa dos ameríndios diné
(vulgo navajo) acerca da criação do mundo: «O Vento existiu primeiro… e
quando a Terra começou a sua existência, o Vento tomou conta dela» (ABRAM, 2007: 245).
Para
a Nação Lakota, o aspecto mais sagrado do Grande Mistério (Wakan Tanka) (NEIHARDT, 2000: 21; EASTMAN, 2006: 28; ABRAM, 2007: 234) é Taku
Škanš (o Céu envolvente) (ABRAM, 2007:
234). Conhecido dos Homens-Medicina simplesmente como Škan,
é considerado como estando em toda a parte e é o responsável por dar a vida,
movimento e pensamento a todas as coisas (ibidem). É esta divindade,
apenas visível para nós como o azul do céu, que os lakota contemporâneos
invocam amiudadas vezes, em inglês, como Great Spirit (Grande Espírito).
Tah-dei – o Vento – é criado por Škan. Tah-dei e Škan (Vento e Céu) são, por vezes, referidos como a mesma
entidade (ibidem). Ambos remetem para o ar enquanto arquétipo daquilo
que é inefável, indizível e incognoscível, mas, mesmo que oculto, inegavelmente
manifesto e até nominável: seja Grande Espírito, Espírito do Mundo ou Espírito
Santo, entre outras designações.
Pelo
exposto, é difícil evitar a conclusão de que, para as antigas culturas
mediterrânicas o ar foi, não menos do que para os diné e os lakota, uma
presença sagrada, sentida como aquilo que juntava invisivelmente todos os seres
humanos e não-humanos: animais, plantas e até rios ou montanhas (ibidem:
244). O reconhecimento do ar, do vento e da respiração, como aspectos de
um poder singularmente sagrado, esteve generalizado a muitos povos do mundo.
Destaca-se
também a íntima relação entre a respiração e a fala. A “língua” não é uma
gramática (de gramma techne: “rabiscos entrançados”), é um sopro de ar (SNYDER, 2018:
95). Distinção já assinalada pelo linguístico suíço Ferdinand de
Saussure (no séc. XIX), e que tanto intrigou Merleau-Ponty, entre la parole
(o acto concreto da fala) e la langue (enquanto sistema de regras
terminológicas, sintácticas e semânticas) (ABRAM, 2007: 85). Embora os humanos sejam seres biológicos
pautados pelas leis da natureza, a fala libertou-lhes a mente dos limites do
seu cérebro material, permitindo-lhes transcender o tempo e o espaço para
explorar o mundo imaterial dos pensamentos e das emoções (FANU, 2008:
74). O conceito diné
de nilch’i (o Vento Sagrado), que envolve a “consciência do ar”, é disso
exemplo ao remeter, numa abrangente concepção holística, para a intuição de que
a psique não se trata de algo imaterial que reside apenas dentro de nós, mas
que partilhamos com o meio invisível em que estamos mergulhados12. Concepção que nos lembra o inconsciente
colectivo de Jung.
O enigma da
evolução do Homo é saber como um conjunto de transformações evolutivas
conduziram a um cérebro com poderes mentais tão poderosos como a capacidade de criar
arte rupestre com mestria ou dominar uma complexa linguagem verbal. Será aqui
que entra o Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade onde
reside o domínio do inesperado e da plena liberdade? No começo do mundo «o Espírito de Deus movia-se sobre
as águas» (Génesis 1) (AA.VV., 1988: 25) e «já existia o Verbo e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus» (Jo. 1:1) (AA.VV., 1975, 322). E é este
o verdadeiro enigma não visível – do sopro vital – e o verdadeiro mistério13 que permite que a vida viva. A presença sublime que se poderá traduzir, na expressão do teólogo alemão Rudolph Otto, como o «misterium
tremedum et fascinans»: algo tremendamente espantoso e,
simultaneamente, fascinante. «Tudo quanto é do domínio do mistério, não é possível
mostrar sem ocultar» (TELMO, 2014: 16) e o Espírito Santo está nestas
circunstâncias.
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