«Outrora havia muitos analfabetos, que não sabiam
ler nem escrever línguas humanas, mas ainda podiam ler e comunicar os sinais
das coisas vivas: o pulsar da terra, os avisos do vento, as metamorfoses das nuvens, os ritmos das águas, o
brilho dos astros, as expressões das pedras, as emoções das plantas, os
sentimentos dos animais, as solicitações dos espíritos, os fluxos do invisível.
Hoje há cada vez menos desses analfabetos, mas superabundam os analfabetos
letrados e diplomados que só sabem ler, escrever e comunicar palavras (e mesmo
assim dificilmente), mas ignoram de todo as múltiplas línguas e linguagens em
que os seres e as coisas do mundo constantemente nos falam e comunicam. Ser
“culto” é muitas vezes o fim da Cultura.»
Paulo
Borges
(in Facebook, 13 de Novembro de 2014)
Van Gogh © Campo de Papolas (1889)
«Estando eu adormecido, pôs-se uma ovelha a tasquinhar a
coroa de hera da minha cabeça, e enquanto tasquinhava dizia: Zaratustra já não
é sábio».
Tendo assim falado retirou-se altiva e desdenhosa.
Assim me contou um rapazito.
Gosto muito de me deitar aqui onde as crianças brincam,
encostado à parede rachada, no meio dos cardos e das papoilas vermelhas.
Para as crianças e também para os cardos e as papoilas
vermelhas, ainda sou um sábio. São completamente inocentes, até na sua maldade.
Mas para os carneiros, deixei de ser um sábio; é o meu
destino e bendigo-o.
Porque a verdade é que fui eu próprio que deixei a casa dos
sábios, atirando com a porta.
Demasiado tempo esteve a minha alma faminta sentada à sua
mesa; eu não sou feito como eles para petiscar o Conhecimento como se partem
nozes.
Amo a liberdade e o vento que corre sobre a gleba fresca;
gosto ainda mais de dormir em cima de peles de bois do que em cima das suas
honrarias e das suas dignidades.
Sou demasiado ardente, demasiado consumido pelos próprios
pensamentos, falta-me amiúde a respiração. Então preciso de sair para o ar
livre, longe de todos os compartimentos empoeirados.
Mas eles estão sentados à fresca sob a sombra fresca; em
parte alguma querem passar de espectadores e defendem-se de ir sentar-se nos
degraus caldeados pelo sol.
À semelhança dos que param na rua, a olhar de boca aberta
para quem passa, assim eles esperam e aguardam, de boca aberta, os pensamentos
que outros inventaram.
Logo que se lhes toca, deixam escapar, involuntariamente,
uma nuvem de pó, como sacos de farinha; mas como reconhecer nesta poeira o grão
e a glória dos campos estivais?
Logo que se julgam sábios, fico horrorizado com as suas
sentenças mesquinhas, as suas pequenas verdades; a sua sabedoria cheira muitas
vezes a pântano; e na verdade, aí discerni mais de uma vez o coaxar das rãs.
São hábeis e têm dedos dextros; que pode a minha
simplicidade contra a sua complexidade? Os seus dedos entendem à maravilha tudo
quanto seja fiar, ajuntar e tecer; tanto assim que fazem as meias do espírito.
São bons relógios, desde que haja o cuidado de lhes dar
corda. Indicam então a hora sem se enganar, ao mesmo tempo que deixam ouvir um
modesto ronronar.
(…) Também sabem jogar com dados falseados; e vi-os jogar
com tal entusiasmo que estavam banhados em suor.
Não tenho nada de comum com eles; as suas virtudes
repugnam-me ainda mais do que as suas falsidades e os seus dados falseados.
(…)
Assim falava Zaratustra.
[NIETZSCHE, 1985: 139-140]
© algures na Web
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
NIETZSCHE, Friedrich. Assim
Falava Zaratustra. Lisboa-. Guimarães Editores, 1985, pp. 376.
Sem comentários:
Enviar um comentário