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(…) Caeiro e Pascoaes tentam arrancar essa natureza automática que
adquirimos da descrição do mundo. O que é quase impossível, dado que, devido ao
seu carácter automático, «têm a força e a tenacidade de uma raiz».
E [António Telmo] faz esta afirmação importantíssima:
«Libertar-se dela só é possível por uma acção iniciática, com todos os riscos
que esta acção pode trazer consigo.»
Fá-lo Pascoaes através da «invocação e provocação dos sentimentos
como se esses fossem entidades estranhas ao seu ser» e fá-lo Caeiro,
contrariamente, arrancando-os do seu «corpo subtil». Pascoaes não combate o
medo (nem o espanto, nem o amor, nem a saudade, nem as sombras), faz dele «o órgão
da nossa vida».
É o poeta anti-fotográfico em relação à natureza. Nele, «A natureza
transforma-se, pelo poder do verbo, na terra vivente dos iniciados».
Nesta ligação profunda entre consciência da Natureza e iniciação,
não se limita contudo, a Pascoaes e Camões, e recorda, das cantigas d’amigo, a
conspiração da Natureza a favor dos amantes. Assim se confirma um dado já
existente na Ilha do Amor, para além da natureza e iniciação, um tipo muito
particular de iniciação que é a iniciação erótica.
[PEDRO, 2018: 227]
Isto tem a ver com o que, já referimos, afirma [António Telmo] sobre Caeiro e a
sua tentativa de fuga ao automatismo, despindo a natureza de todo o sentimento,
de toda a emoção e de todo o pensamento. A mesma causa que leva Pascoaes a
proceder de modo oposto: encher a natureza de medo e todo o tipo de sentimentos
e emoções. Precisamente para fugir a esta relação estereotipada e fotográfica
da natureza, devido ao automatismo das palavras, o automatismo que nos impede,
diz no mesmo texto, de ver uma árvore como ela é realmente, despida do que lhe
pusermos em cima através de palavras mais ou menos poéticas.
[PEDRO, 2018: 228-229]
A Natureza não é só estética, não é só emoção, não é só símbolo, é
escada para a relação mística e para o mistério: «O Sol e a Lua e todas as
estrelas, símbolos nítidos pela exacta relação com Deus e com o grande mistério
do abismo».
Contudo, o olhar simples e sábio do desvalorizado camponês também
por Telmo é resgatado, porque o seu é um olhar complexo, não reducionista,
atento à Terra como ao Céu: «Quanta seriedade e quanta profundidade na
adivinhação do tempo pelos camponeses! A sua é uma ciência de sinais e de
qualidades. Não conta, não pesa e não mede. Lê palavras, aquelas que se
desenham no seu ao nascer ou morrer do Sol e da Lua, na origem e no fim das
luzes diurnas e nocturnas». Lua e sol omnipresentes na Poesia deste filósofo.
[PEDRO, 2018: 230]
Retomando a semelhança com a ilha enquanto «tapete mágico», como
mais tarde [Telmo] irá afirmar em Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões:
«Viaja-se numa ilha
pintada. E vemo-la, de repente, toda ela, um maravilhoso tapete mágico. As
flores que nele emergem são em volume ou em superfície?»
Ali a cabeça a flor Cefísia inclina
Sôbolo tanque lúcido e sereno. (Canto X, 60)
É significativo que
seja o narciso a primeira flor mencionada […]
Não podemos afirmar que tenha sido na poesia de António Telmo a
primeira flor mencionada, no entanto, na poesia conhecida sem dúvida o é… Mas
não apenas por isso, tal como afirma, em Desembarque
dos Maniqueus, que a paisagem da ilha, tal como a pintura persa em que se
inspira, não tem «distância e profundidade», veja-se esta parte do poema: «Anda
Narciso na serra./[…]/Um sorriso longe e perto». O mesmo pensamento, por antecipação. E
ainda outra passagem do mesmo livro em relação à Ilha do Amor:
«As flores, de seguida mencionadas, são todas, como o narciso,
flores de jardim, coisa estranha numa terra onde as árvores crescem e
frutificam «sem necessidade de cultura» (estrofe 58): é a anémona, o lírio
roxo, a violeta, a rosa, a açucena, a manjerona, o jacinto, o jasmim […]
Destas flores, o mirto, o jasmim, a manjerona, o lírio e a rosa vêm
indicados por Henry Corbin (p. 54) como desempenhando um grande papel nas antigas
cerimónias de Zoroastro. «Os antigos persas, escreve o autor de Corpo
Espiritual e Terra Celeste, tiveram uma linguagem sagrada das flores. Tão
eterno e subtil simbolismo oferece combinações ilimitadas à imaginação
litúrgica e ao ritual de meditação. A arte dos jardins e a cultura de flores
assumem o sentido de uma liturgia e de uma realização mental; as flores são
utilizadas como a matéria-prima para a meditação alquímica. O fim é recompor
mentalmente o Paraíso, entrar no pleroma dos seres celestes; a contemplação das
flores, – seus emblemas –, provoca reacções psíquicas, que transmutam as formas
contempladas em energias que lhes correspondem e tais energias psíquicas
resolvem-se finalmente em estados de consciência, em estados de visão mental
onde transparecem as Figuras Celestes.»
Igualmente, a floresta da Ilha do Amor é povoada por «humanas rosas»
(Canto IX). A serra de Telmo é povoada por um humano Narciso. Das flores,
encontramos , na serra de Narciso, três em comum com a Ilha do Amor: roas,
lírios e o próprio narciso. Flores de jardim, improváveis na serra. Tal como na
Ilha, o poema conduz-nos por um ritual de meditação, pela contemplação da flor,
ao processo alquímico através do qual Narciso se vai transformando.
Narciso que é o mito, também é flor. (…) Podemos afirmar que os
primeiros textos de Telmo contêm já o gérmen da sua obra. O mesmo acontece com
esta poesia, onde a natureza antecipa já a visão iniciática do mundo vegetal da
Ilha de Camões.
Talvez possamos fazer em relação a Telmo, a mesma afirmação que ele
faz em relação a Camões, faço minha a sua tese e talvez o filósofo iniciado
tenha tido prematuramente «acesso, não ao manuscrito, mas ao “mundo” onde a
ilha existe realmente».
Não sabemos. Uma certeza temos. A sua Natureza não é a dos
turistas, das visitas ou invasões em massa, mas a Natureza com que comungava em
solidão e silêncio e contemplação. Como ele gostava e frequentemente fazia. Com
respeito e reverência.
Ainda sabemos nós fazê-lo?
[PEDRO, 2018: 235-237]
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REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
PEDRO, Risoleta C. Pinto.
António
Telmo, Literatura & Iniciação – Esboços para uma cartografia da pedra
cúbica. Sintra: Zéfiro, 2018, pp. 284. ISBN 978-989-877-159-I