quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Princípios Fundadores

Numa época de apologias, mais ou menos sub-reptícias ou ostensivas, sobre ambientes tão virtuais quanto alienantes, na qual vigoram superficialismos estereotipados e obsessões “politicamente correctas”, em torno de equívocos (pretensos) unanimismos, virá à colação uma reflexão sumária sobre o woodcraft, ademais no dia em que se comemora o nascimento do fundador do Boy Scout Movement: Lord Baden-Powell of Gilwell. Neste contexto, serão de destacar notórias perdas, que se têm vindo a propagar paulatinamente, desde há décadas, no domínio da naturalidade, da espontaneidade e de inúmeras liberdades elementares, mormente através de discursos encomiásticos que, a par de propagandear a comercialização e a banalização da “aventura” (e não só), promovem uma obcecação pela segurança!
A evolução (ou involução?) que se verificou na prática scout, em particular, surge como um exemplo expressivo – pela autenticidade e pioneirismo deste movimento (que, por isso, constitui um autêntico landmark em matéria de vivência do “ar livre”) – daquilo que viria a afectar, em geral, toda a fenomenologia das praxis “fora de portas”. Aquele que na edição original se designou Scouting for Boys e cujo subtítulo deixava bem claro o seu objectivo – A Handbook for Instruction in Good Citizenship Through Woodcraft – transverteu-se, na versão portuguesa, numa tradução que ignorou a componente nuclear de woodcraft, deixando adivinhar um tendente sumiço da educação mediante actividades de plein air ou, melhor seria dizer, arejadas. Arejadas, desde logo, por se praticarem em espaços de ar livre (ao invés de ambientes de sala ou salão) e, além disso, sob formas o mais libertas de condicionalismos e condicionantes que possível seja.
É sob essas tendências – que alguns apenas poderão intuir dans l’air du temps (ou nem isso!) e que outros, sem dúvida mais sensíveis, sofrem inequivocamente na pele – que se chegou a uma moldura contextual pródiga em contraditórias aparências e mal-entendidos. E não estamos a pensar, de todo, apenas na propensão pelo facilitismo, artificialismo e domesticação de preceitos que se traduzem, por exemplo, na predilecção por acantonamentos – palavra utilizada na gíria esco(u)tista para designar o acto de passar a noite entre quatro paredes (numa casa) – em vez de dormir sob as estrelas. Antes fosse!...
Os tempos actuais são prolíferos no tocante a incongruências e inconvenientes que se expressam sob diversificados moldes. Desde logo, uma “paranóia regulamentar” de tudo legislar, burocratizar e normalizar, com decorrentes proibições e restrições, de acesso, de andar, de acampar, de foguear, etc.. E, pasme-se, os condicionalismos estendem-se ao como (não) estar, ser, fazer!... Num contexto de democracia inquestionável (?) é curioso constatar que nunca se verificou um tão grande cerceamento de liberdades elementares, no tocante à prática de actividades de ar livre, como agora! Tal como uma apetência e predisposição por espaços intervencionados, ao jeito de “parques de recreio” normalizados e que funcionem como uma espécie de sucedâneo daquilo que, como concepção alternativa, passará (a muito custo) por “natureza”: parques de campismo, “parques aventura”, percursos pedestres balizados, vias de escalada equipadas, arborismo, etc.. Outro fenómeno diverso, mas semelhante no que concerne às motivações/crenças de base e aos erros conceptuais destas resultantes, traduz-se na necessidade de implementar mecanismos de gestão que supostamente não só garantam como catalisem a eficiência e a eficácia, confundindo matrizes de desempenho com o próprio desempenho ou gráficos com a realidade.
Ambos os sintomas, a “paranóia regulamentar” e os “tiques tecnocráticos”, estão generalizados aos diversos sectores da sociedade e, portanto, não se restringem exclusivamente às práticas outdoor e, muito menos, ao movimento esco(u)tista ou similares. [Poderemos considerar, sem estar longe da verdade, que ambos se tratam de fenómenos globais e globalizantes, ao estilo “huxleyano”, de um Admirável Mundo Novo (Brave New World)!] No entanto, é sobretudo no âmbito do dito “desporto aventura”, e também do escotismo (ou escutismo, como se queira), que estas fenomenologias revelam roupagens, a nosso ver, bastante interessantes enquanto caso(s) de estudo, tendo em conta o desiderato original de se constituírem como “escolas de vida” baseadas na livre vivência dos vastos espaços naturais. Acresce ao aludido que ambos os sintomas ocorrem frequentemente acompanhados por uma terceira variável: uma manifesta necessidade de afirmação/poder/autoridade pessoal, muitas vezes extravasada sob a forma de “masculinidade sobredimensionada” e/ou atitudes militaristas desfasadas dos contextos em que se inserem. Aliás, foi por estas e por outras razões que surgiram, desde cedo, movimentos divergentes do Scouting como o Kindred of the Kibbo Kift.




É neste enquadramento histórico que se assiste, nos últimos anos, a uma metodologia educativa (extra)ordinária: os “educadores” ao invés de se centrarem nas crianças/jovens, estimulando o desenvolvimento concreto das suas capacidades e competências, alicerçadas num autodidactismo simultaneamente livre e responsável (em que estes decidam, façam e aprendam por si), dispersam-se em infindáveis reuniões em torno de abstracções escudadas por supostos critérios de evidência que se traduzam invariavelmente naquilo que eles entendem (ou que alguém entende por eles) ser o “sucesso”! Afinal basta que as matrizes e os gráficos estejam bonitos, devidamente preenchidos com valores que tornem patente uma expectável “excelência”.
Outro fenómeno curiosíssimo, digno do Entroncamento, consiste na aparente convivência dos opostos “aventura” e “segurança”. Na verdade tal não passa de uma risível aldrabice tendo em conta que se trata tão somente de pseudo-aventura, dentro de limites de segurança considerados perfeitamente aceitáveis! É nesse contexto, aliás, que se passou a impedir as crianças de usar facas de mato (e até canivetes!) ou machados, de subir às árvores ou simplesmente extravasarem alguma réstia de espontaneidade ou de experimentalismo digno de se chamar “aventura”. Fenómeno, aliás, que também se encontra vastamente difundido no âmbito dos designados “desportos aventura”, mormente no ramo da animação turística! É também neste contexto que será oportuno relembrar, neste Dia do Fundador, valores antigos, de que tanto carecem os tempos actuais, na linha daqueles que foram defendidos por Baden-Powell. Só assim, com força e nobreza, se poderão derrotar a fraqueza e o vício… A dureza e a vitalidade do corpo foram tão necessárias como o são hoje. A híper-natural utopia espartana, ao contrário da utopia moderna anti-natural, é tão actual quanto foi outrora e para a aplicar basta:
1. responder com simplicidade e honestidade – ser lacónico;
2. ter vontade de excelência – ser virtuoso;
3. limpar a vida de todos os detalhes supérfluos – ser simples;
4. endurecer a mente e o corpo contra o medo, a adversidade e a dor, sobrando clareza e confiança para conquistar qualquer situação – ser corajoso.
Afinal, pontos de vista altaneiros permitem amplas panorâmicas e contribuem para a largueza de vistas, enquanto que espaços confinados ou limitados são o seu contrário. Para bom entendedor meia palavra deveria bastar e contudo…




«Temos que levar gente, não a uma vida cómoda, a uma vida fácil, mas temos que ter a coragem de levá-la a uma vida difícil, a uma vida perigosa, pois só com uma vida difícil, rigorosa e perigosa, dá o homem o melhor de si próprio. É necessário obrigá-lo a saltar obstáculos. A primeira tarefa de educar é procurar varas bem altas e obrigá-lo a saltar.
Baden-Powell, o que fez nessa conferência célebre foi exactamente isso, o exigir que se ponha diante das pessoas um objecto que vá muito além daquele que lhe possibilitam as suas forças. Ele queria, para todos os rapazes e para todas as moças, quando chegassem a essa idade, uma educação que lhes temperasse a vontade, não mais gente na rua vendo gente a passar, não mais gente encostada pelas portas dos cafés, não mais gente de 20 anos vergonhosamente desocupada, passando todo o dia sem fazer coisa nenhuma, fraquíssima de carácter, fraquíssima de corpo, esperando que chegue o tempo de jantar para que chegue o tempo de dormir para que chegue o tempo de se levantar.»

Agostinho da Silva – Baden-Powell, Pedagogia e Personalidade (1961) in Textos e Ensaios Pedagógicos II, pp. 26-27


Sem comentários:

Enviar um comentário