Numa época de apologias, mais ou menos sub-reptícias ou
ostensivas, sobre ambientes tão virtuais quanto alienantes, na qual vigoram
superficialismos estereotipados e obsessões “politicamente correctas”, em torno
de equívocos (pretensos) unanimismos, virá à colação uma reflexão sumária sobre
o woodcraft, ademais no dia em que se
comemora o nascimento do fundador do Boy Scout
Movement: Lord Baden-Powell of Gilwell. Neste contexto, serão de destacar
notórias perdas, que se têm vindo a propagar paulatinamente, desde há décadas,
no domínio da naturalidade, da espontaneidade e de inúmeras liberdades
elementares, mormente através de discursos encomiásticos que, a par de
propagandear a comercialização e a banalização da “aventura” (e não só), promovem
uma obcecação pela segurança!
A evolução (ou involução?) que se verificou na prática scout, em particular, surge como um
exemplo expressivo – pela autenticidade e pioneirismo deste movimento (que, por
isso, constitui um autêntico landmark
em matéria de vivência do “ar livre”) – daquilo que viria a afectar, em geral,
toda a fenomenologia das praxis “fora
de portas”. Aquele que na edição original se designou Scouting for Boys e cujo
subtítulo deixava bem claro o seu objectivo – A Handbook for Instruction in Good Citizenship Through Woodcraft – transverteu-se, na versão
portuguesa, numa tradução que ignorou a componente nuclear de woodcraft, deixando adivinhar um
tendente sumiço da educação mediante actividades de plein air ou, melhor seria dizer, arejadas. Arejadas, desde logo,
por se praticarem em espaços de ar livre (ao invés de ambientes de sala ou
salão) e, além disso, sob formas o mais libertas de condicionalismos e
condicionantes que possível seja.
É sob essas tendências – que alguns apenas poderão intuir dans l’air
du temps (ou nem isso!) e que outros, sem dúvida mais sensíveis, sofrem
inequivocamente na pele – que se chegou a uma moldura contextual pródiga em contraditórias
aparências e mal-entendidos. E não estamos a pensar, de todo, apenas na propensão
pelo facilitismo, artificialismo e domesticação de preceitos que se traduzem,
por exemplo, na predilecção por acantonamentos – palavra utilizada na gíria esco(u)tista
para designar o acto de passar a noite entre quatro paredes (numa casa) – em
vez de dormir sob as estrelas. Antes fosse!...
Os tempos actuais são prolíferos no tocante a incongruências
e inconvenientes que se expressam sob diversificados moldes. Desde logo, uma
“paranóia regulamentar” de tudo legislar, burocratizar e normalizar, com
decorrentes proibições e restrições, de acesso, de andar, de acampar, de
foguear, etc.. E, pasme-se, os
condicionalismos estendem-se ao como (não) estar, ser, fazer!... Num contexto
de democracia inquestionável (?) é curioso constatar que nunca se verificou um
tão grande cerceamento de liberdades elementares, no tocante à prática de
actividades de ar livre, como agora! Tal como uma apetência e predisposição por
espaços intervencionados, ao jeito de “parques de recreio” normalizados e que
funcionem como uma espécie de sucedâneo daquilo que, como concepção alternativa,
passará (a muito custo) por “natureza”: parques de campismo, “parques aventura”,
percursos pedestres balizados, vias de escalada equipadas, arborismo, etc.. Outro fenómeno diverso, mas
semelhante no que concerne às motivações/crenças de base e aos erros
conceptuais destas resultantes, traduz-se na necessidade de implementar
mecanismos de gestão que supostamente não só garantam como catalisem a
eficiência e a eficácia, confundindo matrizes de desempenho com o próprio
desempenho ou gráficos com a realidade.
Ambos os sintomas, a “paranóia regulamentar” e os “tiques
tecnocráticos”, estão generalizados aos diversos sectores da sociedade e, portanto,
não se restringem exclusivamente às práticas outdoor e, muito menos, ao movimento esco(u)tista ou similares. [Poderemos considerar,
sem estar longe da verdade, que ambos se tratam de fenómenos globais e
globalizantes, ao estilo “huxleyano”, de um Admirável Mundo Novo (Brave New World)!] No entanto, é sobretudo
no âmbito do dito “desporto aventura”, e também do escotismo (ou escutismo,
como se queira), que estas fenomenologias revelam roupagens, a nosso ver, bastante
interessantes enquanto caso(s) de estudo, tendo em conta o desiderato original de
se constituírem como “escolas de vida” baseadas na livre vivência dos vastos
espaços naturais. Acresce ao aludido que ambos os sintomas ocorrem
frequentemente acompanhados por uma terceira variável: uma manifesta necessidade
de afirmação/poder/autoridade pessoal, muitas vezes extravasada sob a forma de “masculinidade
sobredimensionada” e/ou atitudes militaristas desfasadas dos contextos em que se
inserem. Aliás, foi por estas e por outras razões que surgiram, desde cedo,
movimentos divergentes do Scouting como o Kindred of the Kibbo Kift.
É neste enquadramento histórico que se assiste, nos últimos
anos, a uma metodologia educativa (extra)ordinária: os “educadores” ao invés de
se centrarem nas crianças/jovens, estimulando o desenvolvimento concreto das
suas capacidades e competências, alicerçadas num autodidactismo simultaneamente
livre e responsável (em que estes decidam, façam e aprendam por si), dispersam-se
em infindáveis reuniões em torno de abstracções escudadas por supostos critérios
de evidência que se traduzam invariavelmente naquilo que eles entendem (ou que
alguém entende por eles) ser o “sucesso”! Afinal basta que as matrizes e os gráficos
estejam bonitos, devidamente preenchidos com valores que tornem patente uma
expectável “excelência”.
Outro fenómeno curiosíssimo, digno do Entroncamento,
consiste na aparente convivência dos opostos “aventura” e “segurança”. Na verdade
tal não passa de uma risível aldrabice tendo em conta que se trata tão somente
de pseudo-aventura, dentro de limites de segurança considerados perfeitamente
aceitáveis! É nesse contexto, aliás, que se passou a impedir as crianças de
usar facas de mato (e até canivetes!) ou machados, de subir às árvores ou simplesmente
extravasarem alguma réstia de espontaneidade ou de experimentalismo digno de se chamar “aventura”. Fenómeno, aliás, que também se encontra vastamente difundido
no âmbito dos designados “desportos aventura”, mormente no ramo da animação
turística! É também neste contexto que será oportuno relembrar, neste Dia do Fundador,
valores antigos, de que tanto carecem os tempos actuais, na linha daqueles que foram defendidos por Baden-Powell. Só assim, com força e nobreza, se poderão derrotar a
fraqueza e o vício… A dureza e a vitalidade do corpo foram tão necessárias como
o são hoje. A híper-natural utopia espartana, ao contrário da utopia moderna
anti-natural, é tão actual quanto foi outrora e para a aplicar basta:
1. responder com simplicidade e honestidade – ser lacónico;
2. ter vontade de excelência – ser virtuoso;
3. limpar a vida de todos os detalhes supérfluos – ser simples;
4. endurecer a mente e o corpo contra o medo, a adversidade e a dor,
sobrando clareza e confiança para conquistar qualquer situação – ser corajoso.
Afinal, pontos de vista altaneiros permitem amplas
panorâmicas e contribuem para a largueza de vistas, enquanto que espaços
confinados ou limitados são o seu contrário. Para bom entendedor meia palavra
deveria bastar e contudo…
«Temos que levar gente, não a uma vida cómoda, a uma vida
fácil, mas temos que ter a coragem de levá-la a uma vida difícil, a uma vida
perigosa, pois só com uma vida difícil, rigorosa e perigosa, dá o homem o
melhor de si próprio. É necessário obrigá-lo a saltar obstáculos. A primeira
tarefa de educar é procurar varas bem altas e obrigá-lo a saltar.
Baden-Powell, o que fez nessa conferência célebre foi
exactamente isso, o exigir que se ponha diante das pessoas um objecto que vá
muito além daquele que lhe possibilitam as suas forças. Ele queria, para todos
os rapazes e para todas as moças, quando chegassem a essa idade, uma educação que
lhes temperasse a vontade, não mais gente na rua vendo gente a passar, não mais
gente encostada pelas portas dos cafés, não mais gente de 20 anos
vergonhosamente desocupada, passando todo o dia sem fazer coisa nenhuma,
fraquíssima de carácter, fraquíssima de corpo, esperando que chegue o tempo de
jantar para que chegue o tempo de dormir para que chegue o tempo de se levantar.»
Agostinho da Silva – Baden-Powell, Pedagogia e Personalidade
(1961) in Textos e Ensaios Pedagógicos II,
pp. 26-27
Sem comentários:
Enviar um comentário