«RITMOS DE MARCHA
Enganados a um tempo pelo aspecto de paz exterior
que tomou a civilização e, por outro, pela irrupção, de quando em quando, de
crises daquilo a que vulgarmente chamamos guerra, temos em geral a ideia de que
estamos desmobilizados, de que não vivemos sobre nenhum campo de batalha, de
que gozamos, longe de qualquer espécie de frente, os benefícios de um
verdadeiro apaziguamento. E a verdade, no entanto, é que não podemos entender
nada da nossa própria vida ou da vida da colectividade se nos deixamos possuir
por esta ideia.
(…) Tão estranha e maravilhosamente somos compostos
de eternidade e de tempo que, sendo a nossa única e real vocação a de ser
santos, a cada passo nos estamos especializando, nos estamos deixando arrastar
e prender por todos os outros fragmentos de vocação ou por todo o passageiro
chamamento que por acaso ouvimos. E este é o nosso primeiro combate: o de não
deixarmos que o que é puramente temporal tome em nossas vidas o lugar que se
deve ao eterno.
(…) E por aqui voltamos a outro ponto da nossa
batalha. Houve tempo em que eram os mesmos os planos divinos e os nossos. Só
que Deus, cuja essência é possivelmente liberdade, se arriscou com o homem,
como com os anjos, aos perigosos jogos da liberdade: como deixa à pedra que por
sua natureza caia, como deixa à água que por sua natureza se amolde ao
continente, deixou ao homem que, segundo a sua natureza de ser pensante,
pensasse. É evidente que, por definição, o pensamento só se cumpre quando
inteiramente pensa todo o pensável.
(…) Desde, porém, que o entendimento seja completo,
o homem que pensa é um excelente soldado: daqueles que vão para a batalha
resolutos e calmos, pacíficos afinal no meio de todas as tormentas, percebendo
em que guerra estão metidos, em que estratégias e tácticas se envolvem, e
aceitando, o que é mais importante, como perfeitamente legítimos e benéficos,
todos os sofrimentos que sobre eles se abatem.
Mas há outro tipo de combatente. O que surpreendemos
principalmente nas longas esperas de trincheira ou nas marchas sob o fogo ou,
pior ainda, naquelas léguas monótonas em que nada acontece senão frio, chuva e
lama, e dentro o tédio, e fora a suprema inutilidade de tudo. Ele aguarda, no
entanto, ou caminha, e caminha apenas porque, inteiramente entregue ao
exercício, tendo-se apurado nas ascese da ordem unida, tendo tornado parte
integrante do seu próprio ser o guiar seu ritmo de passos pelo camarada da
frente, ou manter-se à distância regulamentar do seu camarada de parapeito, ou
obedecer a todo o toque de comando sem perguntar porque, deixou de ser ele
mesmo, excepto no que deles esperam os outros, e é apenas uma parte do todo.
Serve, no que é indivíduo, a universalidade do universo.
Eis aqui, pois, outra maneira de se salvar.
Aprender, e obedecer ao que se aprendeu. Lançar sobre o chefe toda a
responsabilidade do que vier a suceder. Em todo o momento de perigo, olhar à
direita e confiar o seu destino às resoluções do comando. Só que Deus não quer
mandar em quem não é voluntário.
(…) Sendo liberdade a sua essência, Deus a ninguém
pode forçar. (…) Porque os desastres que são para meu bem, Deus mos inflige sem
me consultar em nada; porque mos inflige por amor. Mas os outros, os que me vão
afastar de Deus, esses jamais virão se eu os não quiser. De qualquer modo, esta
é a lei do serviço militar de Deus: apenas entre quem for voluntário.
(…) Reside em Deus a possibilidade de unir o tempo e
a eternidade; em termos que, como todos os nossos, dado que temos de servir,
para o que não é dia a dia, da linguagem do dia-a-dia, são imperfeitos para
exprimir a noção que se pretende, poderíamos definir Deus como o ponto de
contacto entre o tempo e a eternidade, como o lugar em que o tempo e eternidade
se fundem nalguma coisa que só o silêncio pode dizer. Ora, de tudo o que nos
sucede na terra, alguma coisa existe em que se fundem tempo e eternidade e que
também só pelo silêncio se poderia dignamente exprimir; e esse alguma coisa é o
amor.»
Agostinho da Silva – As Aproximações (Lisboa:
Relógio d’Água Editores, 1990, pp. 114-116)
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