A manhã raia. Não: a
manhã não raia.
A manhã é uma coisa
abstracta, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o
sol, a esta hora aqui.
Se o sol matutino
dando nas árvores é belo,
É tão belo se
chamarmos à manhã «começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos
a manhã,
Por isso se não há vantagem em pôr nomes errados às
coisas,
Devemos nunca lhes
pôr nomes alguns.
Alberto Caeiro (1917)
E se tivermos
necessidade doente de «interpretar a erva verde
[sobre a minha sepultura
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.
Alberto Caeiro (1915)
PC © A Pedra Cúbica (11/04/2018)
Contraria-se assim em Alberto Caeiro a sedução de Worsworth
e a lógica de Kant. Ao duplo programa desta ascese chama Fernando Pessoa o
«paganismo» de Caeiro. «Paganismo» denota aqui um ato «instintivo» de enunciação
da coisa-em-si. Quem enuncia a coisa-em-si, é numa expressão que recorre, «a
voz da terra», a qual enuncia «axiomas da terra».
Tecnicamente, a expressão «a voz da terra» é uma
prosopopeia, figura que consiste na concessão de uma face a algo que naturalmente
a não tem. A face é denotada nesta expressão, metonimicamente, por «voz», que
pressupõe «boca» e, por isso, «face». A atribuição de uma face à terra
confere-lhe a possibilidade de enunciar um discurso ostensivamente próprio. A
«voz da terra» é, todavia, Caeiro: se a terra fala, fá-lo, não porque se lhe
conceda uma face que fale, mas porque ocupou a face de Caeiro, e por ela fala.
Neste sentido, Caeiro é, mais precisamente, no que deverá ler-se como um
genitivo objectivo, uma prosopopeia da
terra. Caeiro permite que a terra fale através dele porque ele próprio é mudo,
ou porque, modo loquaz da mudez, parece enumerar tautologias (como, por
exemplo, «uma pedra é uma pedra»,
que com insistência repete, sem lassitude aparente, como amuleto maníaco). Na
sua mudez, a terra encontra o único lugar silencioso do mundo, a face
elocutória onde não a ocultam sob a interpretação e o devaneio do palavreado.
Esta excecionalidade de Alberto Caeiro empresta um sentido
particular à descrição que de si mesmo faz como «único poeta da natureza». (…)
A excecionalidade de Alberto Caeiro como «voz da terra» é (…) uma forma de
orgulho poético tanto mais aberrante quanto Caeiro persiste em censurar esse
uso da prosopopeia endémico na linguagem humana, que por todo o lado conjura
objetos falantes, numa volubilidade que Caeiro deplora.
(…) (O modo obcessivo de Caeiro de pensar uma pedra como só uma pedra é, naturalmente, reconhecido
pelos seus discípulos. Álvaro de Campos, por exemplo, desculpa o que chama a
incoerência lógica de Caeiro, explicando que a lógica do mestre «excede – como
uma pedra ou uma árvore – a nossa compreensão». Aparentemente menos dócil, Pessoa
ele-próprio, num texto não atribuído, ironiza assim a posição de Caeiro: «Se
ele fosse o absoluto materialista que pretende que é, seria, não um homem, mas
uma pedra. E o ser pedra não seria, confesse-se, a forma de existência mais
apta a exprimir emoções em verso.» António Mora, por seu turno, sublinha a
intermitência de manifestação do objecto natural, que persiste sob esse
desfile, como invariante: «O paganismo é uma religião que nasce da terra, da
natureza directamente – que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade
verdadeira. Por sua própria natureza de natural, ele pode aparecer e
desaparecer, não mudar de qualidade. ‘Neopagão’ é um termo que tem tanto
sentido como ‘neopedra’ ou ‘neoflor’.» O mesmo movimento corretivo é defendido
por Bernardo Soares, de modo programático e como exortação a si mesmo: «Reparar
em tudo pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações do Mystério,
mas directamente como florações da Realidade.» «Apocalypticamente» refere aqui
uma intuição que atravessa o objecto, e é um encontro visionário com as
«primeiras e últimas coisas»; «directamente como florações da Realidade» denota
o domínio do imediatamente perceptível, e evidencia como também Bernardo Soares
se pretende discípulo de Alberto Caeiro.)
[FEIJÓ, 2015: 46-49]
PC © A Pedra Bruta (27/04/2018)
NOTA
Muito para além da verbalização encontra-se a linguagem não
verbal (sub e sobrejacente ao verbo), revelada na magnificência do mais profundo
silêncio, mas também sob multiplicidade de outras expressões, formais e
informais, humanas e não-humanas. O verbalizar (tal como o inerente pensar) é
algo de outra ordem…
É óbvio que podemos pensar uma pedra e um geólogo, mormente
especializado em petrografia e/ou petrologia, é disso prova: não só pensa
(sobre) as pedras como é capaz de verbalizar copiosamente esse pensamento! E claro, as pedras podem “falar”, e “falam”, numa
linguagem não verbal: «aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!». Tão claro
quanto a evidência da ineficácia da verbalização para expressar o não verbal, ao
recorrer a um conjunto de palavras que não passam de metáforas, tantas vezes
desajustadas, nesse contexto! Já «pensar uma pedra como só uma pedra é» será uma
impossibilidade quando se não é pedra… Mas, felizmente, existem aproximações.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
FEIJÓ, António M.. Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes). Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2015, pp. 176. ISBN 978-972-27-2356-5
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