sexta-feira, 27 de abril de 2018

D'a pedra e...


A manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma coisa abstracta, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o sol, a esta hora aqui.
Se o sol matutino dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã «começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos a manhã,
Por isso se não há vantagem em pôr nomes errados às coisas,
Devemos nunca lhes pôr nomes alguns.
Alberto Caeiro (1917)

E se tivermos necessidade doente de «interpretar a erva verde
[sobre a minha sepultura
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.
Alberto Caeiro (1915)

PC © A Pedra Cúbica (11/04/2018)

Contraria-se assim em Alberto Caeiro a sedução de Worsworth e a lógica de Kant. Ao duplo programa desta ascese chama Fernando Pessoa o «paganismo» de Caeiro. «Paganismo» denota aqui um ato «instintivo» de enunciação da coisa-em-si. Quem enuncia a coisa-em-si, é numa expressão que recorre, «a voz da terra», a qual enuncia «axiomas da terra».
Tecnicamente, a expressão «a voz da terra» é uma prosopopeia, figura que consiste na concessão de uma face a algo que naturalmente a não tem. A face é denotada nesta expressão, metonimicamente, por «voz», que pressupõe «boca» e, por isso, «face». A atribuição de uma face à terra confere-lhe a possibilidade de enunciar um discurso ostensivamente próprio. A «voz da terra» é, todavia, Caeiro: se a terra fala, fá-lo, não porque se lhe conceda uma face que fale, mas porque ocupou a face de Caeiro, e por ela fala. Neste sentido, Caeiro é, mais precisamente, no que deverá ler-se como um genitivo objectivo, uma prosopopeia da terra. Caeiro permite que a terra fale através dele porque ele próprio é mudo, ou porque, modo loquaz da mudez, parece enumerar tautologias (como, por exemplo, «uma pedra é uma pedra», que com insistência repete, sem lassitude aparente, como amuleto maníaco). Na sua mudez, a terra encontra o único lugar silencioso do mundo, a face elocutória onde não a ocultam sob a interpretação e o devaneio do palavreado.
Esta excecionalidade de Alberto Caeiro empresta um sentido particular à descrição que de si mesmo faz como «único poeta da natureza». (…) A excecionalidade de Alberto Caeiro como «voz da terra» é (…) uma forma de orgulho poético tanto mais aberrante quanto Caeiro persiste em censurar esse uso da prosopopeia endémico na linguagem humana, que por todo o lado conjura objetos falantes, numa volubilidade que Caeiro deplora.
(…) (O modo obcessivo de Caeiro de pensar uma pedra como só uma pedra é, naturalmente, reconhecido pelos seus discípulos. Álvaro de Campos, por exemplo, desculpa o que chama a incoerência lógica de Caeiro, explicando que a lógica do mestre «excede – como uma pedra ou uma árvore – a nossa compreensão». Aparentemente menos dócil, Pessoa ele-próprio, num texto não atribuído, ironiza assim a posição de Caeiro: «Se ele fosse o absoluto materialista que pretende que é, seria, não um homem, mas uma pedra. E o ser pedra não seria, confesse-se, a forma de existência mais apta a exprimir emoções em verso.» António Mora, por seu turno, sublinha a intermitência de manifestação do objecto natural, que persiste sob esse desfile, como invariante: «O paganismo é uma religião que nasce da terra, da natureza directamente – que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira. Por sua própria natureza de natural, ele pode aparecer e desaparecer, não mudar de qualidade. ‘Neopagão’ é um termo que tem tanto sentido como ‘neopedra’ ou ‘neoflor’.» O mesmo movimento corretivo é defendido por Bernardo Soares, de modo programático e como exortação a si mesmo: «Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações do Mystério, mas directamente como florações da Realidade.» «Apocalypticamente» refere aqui uma intuição que atravessa o objecto, e é um encontro visionário com as «primeiras e últimas coisas»; «directamente como florações da Realidade» denota o domínio do imediatamente perceptível, e evidencia como também Bernardo Soares se pretende discípulo de Alberto Caeiro.)
[FEIJÓ, 2015: 46-49]

PC © A Pedra Bruta (27/04/2018)

NOTA
Muito para além da verbalização encontra-se a linguagem não verbal (sub e sobrejacente ao verbo), revelada na magnificência do mais profundo silêncio, mas também sob multiplicidade de outras expressões, formais e informais, humanas e não-humanas. O verbalizar (tal como o inerente pensar) é algo de outra ordem…
É óbvio que podemos pensar uma pedra e um geólogo, mormente especializado em petrografia e/ou petrologia, é disso prova: não só pensa (sobre) as pedras como é capaz de verbalizar copiosamente esse pensamento!  E claro, as pedras podem “falar”, e “falam”, numa linguagem não verbal: «aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!». Tão claro quanto a evidência da ineficácia da verbalização para expressar o não verbal, ao recorrer a um conjunto de palavras que não passam de metáforas, tantas vezes desajustadas, nesse contexto! Já «pensar uma pedra como só uma pedra é» será uma impossibilidade quando se não é pedra… Mas, felizmente, existem aproximações.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FEIJÓ, António M.. Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2015, pp. 176. ISBN 978-972-27-2356-5


Sem comentários:

Enviar um comentário