Lentamente, o meu cérebro começou a reajustar-se a espaços que não
utilizava havia meses. Durante muito tempo, tinha vivido na universidade, em
bibliotecas e salas de aula, de cenho franzido a olhar para ecrãs, a corrigir
trabalhos, a tentar encontrar referências académicas. Era um outro tipo de
perseguição. Ali eu era um animal diferente. Alguma vez viram um veado a sair
do seu esconderijo? Dão um passo, param e ficam imóveis, com o nariz no ar, a
olhar e a farejar. Um frémito nervoso poderá percorrer-lhe os flancos. E
depois, tranquilizados por se sentirem em segurança, saem do meio dos arbustos
para irem pastar. Naquela manhã, senti-me como o veado. Não que estivesse a
farejar o ar ou parada com medo – mas tal como ele, estava dominada por modos muito antigos e emocionais de me
deslocar através de uma paisagem, a experimentar formas de atenção e de
comportamento que estavam para além do controlo consciente. Qualquer coisa
dentro de mim comandava os meus passos sem que eu tivesse grande consciência
disso. Talvez fossem milhões de anos de evolução, talvez fosse intuição, mas na
minha busca de açores sinto-me tensa quando caminho ou estou imóvel ao sol, dou
comigo a dirigir-me inconscientemente para zonas de luz, ou escapar-me para
zonas de sombra estreitas e frias ao longo dos vastos intervalos entre os
renques de pinheiros. Encolho-me se oiço o chamamento de um gaio, ou o grito de
alarme repetido e zangado de um corvo. Estes dois sons podiam significar Alerta, humano! ou Alerta, açor! E naquela manhã eu estava a tentar encontrar um
ocultando o outro. Essas antigas intuições fantasmagóricas que há milénios
ligam corpo e espírito tinham-se afirmado, impondo a sua vontade, fazendo-me
sentir incomodada sob a luz intensa do sol, inquieta no lado errado de uma
cumeeira, de certo modo obrigada a caminhar sobre uma elevação coberta de ervas
descoradas para chegar a qualquer coisa do outro lado que acabaria por se
revelar um lago.
[MACDONALD, 2015: 14]
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
MACDONALD, Helen. A de
Açor. Alfragide: Lua de Papel, 2015, pp. 344. ISBN 978-989-23-3394-6
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