...e/ou aquele que tenta?
Escalar altas montanhas a fim de tentar o Tentador?
Escalar altas montanhas a fim de tentar o Tentador?
(NIETZSCHE, 1985: 29)
A ÁRVORE NA MONTANHA
Zaratustra tinha notado que um mancebo o evitava. E uma
tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que dominam a cidade denominada «Vaca
Malhada», eis que encontrou no seu caminho esse mancebo sentado ao pé de uma
árvore, dirigindo ao vale um olhar cansado. Zaratustra enlaçou a árvore a que o
mancebo se encostava e disse:
«Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos, não
seria capaz.
Mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe
apraz. As mãos invisíveis são hábeis entre todas em nos dobrar e açoitar à sua
vontade».
A tais palavras o mancebo levantou-se estupefacto e
exclamou: «Estou a ouvir Zaratustra, e era precisamente nele que estava a
pensar».
Zaratustra replicou: «Que te leva a ter medo? O que sucede
à árvore sucede ao homem.
Quanto mais aspira a
subir para as alturas e para a luz, mais as suas raízes aspiram a mergulhar na
terra, nas trevas, nas profunduras – no mal».
«Sim, no mal – exclamou o mancebo. Como é possível teres
descoberto a minha alma?»
Zaratustra sorriu e disse: «Há almas que nunca
descobriremos, a não ser que as tenhamos inventado».
«Sim, no mal!» – repetiu o mancebo – «Disseste a verdade
Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que aspiro a elevar-me às
alturas e já ninguém tem confiança em mim. A que se deve isto?
Mudo depressa demais. O meu Eu de hoje contradiz o meu Eu
de ontem. Com frequência salto degraus quando subo – e nenhum degrau mo perdoa.
Quando chego acima, acho-me sempre só. Ninguém me dirige a
palavra, a solidão glacial obriga-me a tiritar. O que venho eu então procurar
nas alturas?
O meu desejo e o meu desprezo crescem a par; quanto mais me
elevo, mais desprezo o que se eleva. Que
vai ele procurar nas alturas?
Como me envergonho de subir aos tropeções! Como troço do
meu fôlego ofegante! Como odeio aquele que tem asas! Como me sinto cansado de
ter subido tão alto!»
Aqui o mancebo calou-se. E Zaratustra, olhando atento a
árvore a que estavam encostados, assim lhe falou:
«Esta árvore cresceu solitária na montanha; ultrapassou no
seu crescimento homens e animais.
E se quisesse falar, ninguém havia que a pudesse
compreender, tanto cresceu.
Agora espera, espera sem cessar – mas o quê? Habita
demasiado perto da morada das nuvens, decerto espera o raio que não tardará a
vir».
Quando Zaratustra acabava de dizer estas palavras, o
mancebo dominado por uma violenta agitação exclamou: «É verdade, Zaratustra,
dizes bem. Ao procurar as alturas, aspirava à minha queda, e tu és o raio que
esperava. Olha: que sou eu desde que tu nos apareceste? Foi a inveja que te tenho que me destruiu!»
Assim falou o mancebo, chorando amargamente. Zaratustra, cingindo-o com o seu
braço, levou-o consigo.
E depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra
começou a falar assim:
«Tenho o coração dilacerado. Melhor do que as tuas
palavras, dizem-me os teus olhos o perigo em que estás.
Ainda não és livre, procuras
ainda a verdade. Foi esta procura que te fez passar noites em claro, e
exasperou a tua consciência.
Queres escalar as
livres alturas, a tua alma aspira às estrelas. Mas os teus maus instintos
também têm sede de liberdade.
Os teus cães selvagens querem libertar-te; ladram de alegria
na tua cave enquanto o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
Tu és ainda, como verifico, um prisioneiro que sonha com a
liberdade. Ai! alma destes presos torna-se prudente, mas também astuta e má.
Até o espírito libertado precisa ainda de se purificar.
Guarda ainda sobre si a sombra da sua prisão e o cheiro a bafio; é preciso
ainda que a sua vista se purifique.
É certo, conheço o perigo em que estás. Mas conjuro-te, em
nome do meu amor e da minha esperança, não repudies nem o teu amor nem a tua esperança!
Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem
os que te querem mal e te olham com maus olhos. Fica sabendo que o homem nobre
é uma pedra de toque no caminho de todos os outros.
Até para os bons o nobre é um obstáculo, e até quando lhe
chamam bom, é tão sòmente uma maneira de o pôr de parte.
O homem nobre quer criar alguma coisa nova e uma nova
virtude. O bom deseja as velhas coisas, e conservar tudo o que é velho.
E o perigo para o nobre, contudo, não é tornar-se bom, mas
insolente, trocista e destruidor.
Ah! quantos nobres corações assim conheci, que perderam a
sua mais elevada esperança! E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
Desde então têm vivido uma vida de minguadas aspirações,
feita de alegrias breves, sem ver mais longe que de um dia para outro.
«O espírito é também voluptuosidade», diziam. E quebravam
as asas do seu espírito. Agora rastejam e maculam tudo o que consomem.
Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são apenas
gozadores. O herói é para eles aflição e espanto.
Mas, em nome do meu amor e da minha esperança, eu te
conjuro: não repudies o herói que há em ti! Venera piedosamente a tua mais
elevada esperança!»
Assim falava Zaratustra.
(NIETZSCHE, 1985: 47-50)
© da net (?)
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa:
Guimarães Editores, 1985, pp. 376.
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