Nicholas Roerich © O Silêncio do Filósofo (1940)
«As palavras que
jamais foram pronunciadas são as flores
do silêncio.»
Provérbio Japonês
«(…) our chiefest
secret place of silence must be within the soul rather than without.»
Cisneros (1929: 196)
«A música é a irmã perfeita do
silêncio.»
John O’Donahue (Facebook via Alexandre
Gabriel)
O primeiro sentido da palavra “silêncio” (do latim silentium) é a capacidade de “calar-se”,
de permanecer mudo (SMEDT, 2001: 11). Algo aparentemente fácil, mas que, na
verdade, implica um resoluto autodomínio: conhecimento, posse e dom de si mesmo
(VASTO, 1978: 119). Calar-se serve, desde logo, para guardar segredo. O segredo
ou reserva será um meio de defesa… Como
diz a assertiva sabedoria popular: «Pela
boca morre o peixe». É costume considerar-se que há três coisas que as
pessoas têm dificuldade de fazer e manter segredo é uma delas, a par de
conhecer-se a si próprio e vencer o apetite. Atente-se que secretismo não se
trata de mentir por omissão e muito menos deliberadamente. Um “Homem secreto”
deverá ser precisamente o contrário de um hipócrita, de um “homem da mentira” (na
acepção de Scott Peck, 2001): este esconde os defeitos e as culpas, aquele o
que tem de melhor (VASTO, 1978: 129).
O silêncio é também essencial no
âmbito da aprendizagem em
determinadas ordens esotéricas, como por exemplo acontecia entre os antigos
pitagóricos, e é por isso que os neófitos são convidados «a meditar, ouvir, calar-se» (SMEDT, 2001: 14). «O silêncio é de ouro e a palavra de prata»;
i.e., não se trata de “se calar”, expressão
deselegante e ademais incorrecta entre Homens de Bem; trata-se apenas e tão-somente
de exercer o justo equilíbrio, da prudência e da temperança, no uso da palavra
e do silêncio. Trata-se de optar, deste modo, por não falar, parafraseando um
dito Sufi, «se a palavra que vai dizer
não for mais bela do que o silêncio». Tal como se pode decidir proferir
palavra caso haja algo a afirmar que mereça realmente ser ouvido. Deste modo se
refina a fortaleza de carácter, apartando-se de “palavreado” inoportuno ou,
mais grave, indecoroso.
O silêncio é igualmente a base da introspecção,
meditação, labor sobre si próprio. É o silêncio que propicia o ambiente
adequado ao «Ora et Labora» de S.
Bento (séc. VI): a “acção directa”, simultaneamente operativa e especulativa,
sobre o templo ou laboratório (de labor
+ oratório) de si mesmo, lugar de profundas
operações e laboriosas transformações no âmbito do aprimorar da “matéria”. Silêncio
que não se resume apenas à renúncia da palavra, mas igualmente à ausência de
ruído. Calar-se não só para se ouvir a si próprio e ao(s) outro(s), mas também silêncio
para ouvir a voz do Todo. O silêncio é o momento em que Deus se reconhece em
cada um de nós (BOYER, 2017). O(u)rar e O(b)rar, enquanto exercícios diários de
aperfeiçoamento assentes na sabedoria milenar do silêncio. Se necessário for, retirando-se
na qualidade de silenciário, através da experienciação temporária de “voto de
silêncio”, para mergulhar nas profundezas do mysterium tremendum et fascinans… para ouvir a Voz do Silêncio.
O filme Silence (Silêncio), do realizador Martin Scorsese, que estreou em
Portugal no dia 19 de Janeiro de 2017, aborda precisamente a (re)ligação a Deus, ou a
ausência desta, justamente no contexto do “vazio”: «– Rezo, mas estou perdido.
– Estarei apenas a rezar ao Silêncio?». A resposta assenta na Esperança e,
invariavelmente, no exercício do mister e na oração com base no silêncio: Ora, lege,
lege, lege, relege, labora et invenies (Ora, lê, lê, lê, relê, labora e
encontrarás) – máxima do Mutus Liber (o Livro Mudo da
Alquímia). O silêncio sagrado é o
silêncio que permite fazer passar, sem perturbações, a mensagem essencial
(AUGUSTO, 2014: 60). Faça-se, pois, silêncio!
Silêncio, que se vai cantar o fado…
Nicholas Roerich © Turquestão - Silêncio da Montanha (1937)
A chuva parou tão de
repente como tinha começado. De novo a pradaria se tingiu de um branco pálido e
os pássaros voltaram a cantar, como se tivessem despertado do sono naquele
momento. Pesadas gotas continuavam a cair das folhas das árvores. Enxuguei a água
que me banhava os olhos e aproximei-me do casebre. Apenas atravessei a porta,
senti um cheiro pestilencial e vi uma nuvem de moscas à entrada, fervilhando em
torno de um excremento humano.
Concluí imediatamente
que alguém havia estado ali há pouco, talvez a descansar, para prosseguir
depois a caminhada. Sinceramente, irritou-me que esse alguém fosse tão
ordinário ao ponto de utilizar aquele único refúgio para semelhante efeito. A
situação, todavia, tinha o seu quê de caricato, e desatei a rir. E menos apreensivo
fiquei a respeito de um tal desconhecido.
Penetrando melhor no
casebre, notei que havia lume debaixo das cinzas. Aproveitei o calor para secar
as roupas encharcadas. Mesmo demorando algum tempo, conjecturei que não teria
dificuldade de alcançar o homem que me tinha precedido, pois era evidente que
não caminhava apressado.
Saí da arribana. A
planície e o arvoredo que me tinha abrigado estavam banhados por uma luz
dourada, e a folhagem, agora seca, rumorejava suavemente ao entrechocar-se,
como que batida por uma chuva de areia.
Peguei num ramo seco
que me servisse de bordão e prossegui a caminhada. Andando, atingi finalmente a
ladeira de onde podia ver ao fundo a linha da costa.
(…) Violentas emoções
me encheram o peito quando, encharcado pela chuva e apoiado ao bordão, corri
pela encosta abaixo, escorregando aqui e além, (…) [ENDO, 2010: 111-113]
De noite, sentado na
cama, com o arrulhar de uma rola no arvoredo a cortar o silêncio profundo,
sentia o rosto de Cristo olhá-lo fixamente. Os olhos azuis transpirando
piedade, os lineamentos serenos, compunham um rosto que lhe inspirava
confiança. «Senhor, nunca nos deixarás sós», murmurava ele, olhando
intensamente para esse rosto. E imaginava a resposta: «Não, não vos abandonarei
jamais.» Estendendo a cabeça, apurava o ouvido para melhor escutar essa voz,
mas a única coisa que ouvia era o arrulhar da rola. A escuridão era densa,
profunda. [ENDO, 2010: 156]
O padre permanecia
sentado, as costas arqueadas batidas pelo clarão prateado do luar que lhe
entrava pelas grades. A parede reflectia-lhe os ombros descarnados. De vez em
quando, sobressaltava-se. Era quando lhe chegava aos ouvidos o súbito restolhar
de algum insecto na folhagem do bosque.
Fechando os olhos,
todo ele se diluiu na densa escuridão envolvente. Nessa noite, em que todos os
que conhecia já dormiam profundamente um outro sono, trespassava-lhe o coração
a lembrança de uma outra noite. Prostrado no chão moreno de um Jardim que
absorvera todo o calor do dia, só, apartado dos discípulos que dormiam chumbados
à terra, um homem tinha dito: «A minha alma está triste até à morte.» E o suor
desse homem escorria-lhe pela fronte em gotas de sangue. Era esse o rosto que
tinha agora diante dos olhos. Centenas de vezes lhe aparecera em sonhos,
sofredor, coberto de suor, mas, inexplicavelmente, sempre fugidio, sempre
perdido na lonjura. Só esta noite, e pela primeira vez, tinha podido concentrar
o olhar nesse rosto emaciado e doloroso.
Teria também esse
homem tremido de pavor aquela noite perante o silêncio de Deus? Aterrava-o
admitir semelhante coisa. [ENDO, 2010: 195]
Nicholas Roerich © Cristo no Deserto (1933)
De novo, ouviu o
guarda ressonar. Desta vez, era tal qual o rumorejo de um moinho de vento. O
padre sentou-se no chão encharcado de urina e riu como um idiota. Que bruto
devia ser o tipo! Sem ter por que temer a morte, ressonava estupidamente,
percorrendo todas as gamas do registo sonoro. Dormia como um cevado,
fragorosamente, a boca escancarada. Parecia-lhe ver com os próprios olhos a
cara do guarda: um carão gordanchudo, como um odre de saqué… A personificação,
em suma, do homem enfartado. E todavia, para as suas vítimas potenciais, esse
rosto havia de ser tremendamente cruel. Não, decerto, uma crueldade requintada,
aristocrática, mas boçal como a de um labrosta tratando reses ou criaturas a ele
inferiores. Tipos desses vira-os ele por terras de Portugal e conhecia-os bem.
Também agora este indivíduo não fazia a mínima ideia do sofrimento que podia
causar aos demais com a sua grosseria. Também a um outro homem, cujo rosto era
o mais belo no sonho dos homens, outros homens, a este semelhantes, lhe haviam
dado a morte.
Tornava-se-lhe
irritante um ruído tão grosseiro. E logo numa noite daquelas, a mais cruel da
sua vida! Parecia-lhe mesmo que escarneciam dele. Quando o ultraje cessou,
bateu forte na parede, com o punho. Mas os guardas não se levantaram… tal como
os discípulos no horto de Getsémani, profundamente adormecidos, em absoluto
indiferentes ao tormento do mestre. E de novo bateu com força na parede da
cela.
– Que é padre, que é?
– Era o intérprete: o gato a moer a presa… – Está assustado, é isso? Era bem
melhor que o senhor fosse menos teimoso. Diga uma só palavra, homem! Diga que
abjura e tudo fica arrumado. Desafogue essa tensão acumulada e será outro!
– Era só para dizer
que não suporto por mais tempo esse tipo que está para aí a ressonar –
respondeu o padre, no escuro.
Caiu das nuvens o
intérprete, verdadeiramente siderado…
– A ressonar? Essa é
boa!... O senhor ouviu daí, Sawano?...
O padre não sabia que
Ferreira estava perto do intérprete.
– Sawano, diga-lhe o
que é… Explique-lhe…
A voz que, anos
atrás, ouvia diariamente soou aos ouvidos do padre débil e triste:
– Ninguém ressona
aqui. É o estertor dos cristãos pendurados na fossa!... [ENDO, 2010: 229-230]
Quando o padre
assentou o pé no fumie nascia a
manhã. Ao longe, um galo cantou. [ENDO, 2010: 237]
Nicholas Roerich © Manhã - Silêncio Violeta (?)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· AUGUSTO, Carlos Alberto. Sons e Silêncios da Paisagem Sonora
Portuguesa. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014, pp. 96.
· BLAVATSKY, Helena (1899). A Voz do Silêncio. São Paulo:
Editora Ground, 2002, pp. 112. ISBN 85-7187-094-2
· BOYER, Remi. Palestra, no âmbito do relançamento do livro A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência (editora Zéfiro), proferida no dia 24 de Abril de 2017, na sede da AMORC em Lisboa
· CISNEROS, García
Jiménez de (1500): Book of Exercises for the Spiritual Life. Montserrat: Monastery of Montserrat, 1929, pp. 338.
· ENDO, Shusaku. Silêncio. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010, 2ª ed., pp.
272. ISBN 978-972-20-4135-5
· PECK, Scott (1985). Gente da Mentira – A Esperança para Curar a
Maldade Humana. Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 360. ISBN
972-8541-276-9
· SMEDT, Marc de. Elogio do Silêncio. Cascais: Sinais
de Fogo, 2001, pp. 216. ISBN 972-8541-25-2
· VASTO, Lanza del. Não-violência e Civilização. Lisboa,
1978.