segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Fertilidade


Durante os primeiros meses, a parte mais difícil da gravidez foi acreditar que tudo estava realmente normal e saudável. Por muitos testes que recebesse com resultados tranquilizadores, preparei-me para a tragédia. O que mais ajudava era caminhar e, durante as últimas semanas de ansiedade antes do parto, acalmava os nervos caminhando, enquanto as minhas ancas doridas deixassem, num trilho bem cuidado ao longo de um riacho intocado. O riacho começa perto do cimo de uma montanha coberta de neve e a água límpida precipitava-se de uma queda-d’água, acumula-se em dezenas de poças e flui através de rápidos até finalmente desaguar no Pacífico.
Durante essas caminhadas, mantinha os olhos abertos para juvenis de salmão-prateado a caminho do mar após meses de incubação em estuários rasos. E imaginava os juvenis de salmão-prateado, salmão-rosa e salmão-keta a nadarem vigorosamente pelos rápidos e quedas-d’água, determinados a chegar aos locais de desova onde nasceram. Dizia para mim mesma que era a determinação do meu filho. Era manifestamente um lutador, uma vez que conseguira chegar até mim, apesar das dificuldades, também arranjaria maneira de nascer com saúde.
Não é possível arranjar um melhor símbolo da tenacidade da vida do que o salmão do Pacífico. Para chegar aos locais de desova, o salmão-prateado subirá saltitantemente quedas-d’água gigantescas como um canoísta louco em contramão e a esquivar-se de águias e ursos-pardos. No fim da sua vida, o salmão gasta as suas últimas forças vitais para concluir a sua missão. Os juvenis de salmão têm de sofrer uma transformação drástica (smolting) para preparar os seus corpos para a transição da água doce para os oceanos, onde irão passar as suas vidas até ser a sua vez de fazer a viagem rio acima.
Mas estes feitos triunfantes da biologia são apenas uma parte da história da regeneração. Porque, como toda a gente que vive em terra de salmão sabe, às vezes os rios de outono estão assustadoramente vazios, cheios somente de folhas mortas e, eventualmente, um ou dois peixes sarapintados. Os salmões são, na realidade, os nossos atletas olímpicos, sendo a sua determinação uma das manifestações mais poderosas do planeta da vontade de preservar o ciclo da vida – mas não são invencíveis. A força deles pode ser derrotada pela sobrepesca, por explorações piscícolas que propagam piolhos-do-mar que matam o salmão jovem em massa, pelas águas a aquecer que os cientistas acham que poderão ameaçar o seu alimento, por explorações madeireiras negligentes que deixam os rios de desova obstruídos por detritos, por barragens de cimento que desafiam até o salmão-prateado mais acrobático. E, é claro, podem ser travados de vez por derramamentos de petróleo e outros acidentes industriais.
Razões pelas quais o salmão desapareceu de cerca de 40% da sua ocupação histórica no Pacífico Noroeste e diversas populações de salmão-prateado, salmão-real e salmão-vermelho estão sob permanente ameaça e em risco de extinção. Para saber até onde é que estes números nos vão levar, basta-nos olhar para a Nova Inglaterra e para a Europa Continental, onde as migrações comerciais de salmão do Atlântico desapareceram dos rios onde em tempos eram abundantes. Tal como os seres humanos, o salmão é capaz de superar muita coisa – mas não tudo.
E é por essa razão que o final feliz da minha própria história ainda me deixa pouco à vontade e me parece incompleta. Sei que para algumas pessoas, a minha saga da fertilidade parece reforçar a ideia de que a resiliência humana acaba sempre por sair vencedora, mas não é isso que parece. Não sei porque é que esta gravidez vingou, assim como não sei porque é que as anteriores falharam – nem eu nem os médicos, sejam eles da alta sejam da baixa tecnologia. A infertilidade é apenas uma das muitas áreas em que nós humanos somos confrontados com os nossos oceanos de ignorância. (…)

Voltar à vida
No início de 2013, encontrei um discurso da escritora e educadora Leanne Simpson, que tem origens nos Mississauga Nishnaabeg, em que ela descreve os ensinamentos e as estruturas de governação do seu povo da seguinte maneira: «Os nossos sistemas foram concebidos para promover mais vida.» A afirmação fez-me parar. Dei-me conta de que este objectivo orientador era precisamente a antítese do extrativismo, que se baseia na premissa de que a vida pode ser drenada indefinidamente e que, longe de promover a vida futura, é especialista em transformar sistemas vivos em lixo, sejam ele os inúmeros «terrenos mortos» que orlam as estradas nas areias betuminosas de Alberta, sejam os exércitos de pessoas descartadas que vagueiam pelo mundo à procura de trabalho temporário, ou as partículas e gases que abafam a atmosfera e que foram outrora partes saudáveis dos ecossistemas.
(…) Acabámos por ter uma conversa longa e alargada sobre a diferença entre uma mentalidade extrativista (que Simpson descreve sem rodeios como «roubar» e tirar coisas «de uma relação») e uma mentalidade regenerativa. Caracterizou o sistema Anishinaabe como «uma forma de viver destinada a gerar vida, não simplesmente vida humana, mas também a vida de todas as coisas vivas». Trata-se de um conceito de equilíbrio, de harmonia, comum a muitas culturas indígenas e que é frequentemente traduzido como «a boa vida». Mas Simpson disse-me que preferia a tradução «renascimento contínuo», que ouvira pela primeira vez da colega escritora e ativista Anishinaabe Winona LaDuke.
É compreensível associarmos atualmente estas ideias a uma mundivisão indígena: foram sobretudo essas culturas que mantiveram esta forma alternativa de ver o mundo vivo face às escavadoras do colonialismo e da globalização empresarial. À semelhança dos preservadores de sementes que protegem a biodiversidade da reserva global de sementes, outras formas de nos relacionarmos com o mundo natural e uns com os outros foram protegidas por muitas culturas indígenas, baseadas em parte numa crença de que virá o tempo em que estas sementes intelectuais serão necessárias e o solo para elas tornar-se-á mais uma vez fértil.
(…) Na verdade, o que está a surgir é um novo tipo de movimento de direitos reprodutivos, que luta não só pelos direitos reprodutivos das mulheres como pelos direitos reprodutivos do planeta como um todo – pelas montanhas decapitadas, os vales submersos, as florestas abatidas, os lençóis freáticos fraturados, as encostas esventradas, os rios envenenados, as «povoações do cancro». Toda a vida tem o direito de se renovar, regenerar e curar.
Com base neste princípio, países como a Bolívia e o Equador – com grandes populações indígenas – consagraram na lei os «direitos da Mãe Terra», criando novos instrumentos jurídicos poderosos que garantem o direito dos ecossistemas não só de existir como de «regenerar».*
[KLEIN, 2016: 528-532]
Pedro Cuiça © Montanha Sagrada (vulgo Serra de Sintra, 13/11/2016)

*Quando o Equador adotou uma nova Constituição em 2008 tornou-se o primeiro país a consagrar na lei os direitos da natureza. O artigo 71 da Constituição do país diz: «A natureza, ou Pachamama, onde a vida é criada e reproduzida, tem o direito a que a sua existência seja integralmente respeitada, bem como o direito à manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolucionários. Todas as pessoas, comunidades, povos ou nacionalidades podem exigir do poder público que estes direitos da natureza sejam respeitados.»



Fonte bibliográfica:
KLEIN, Naomi. Tudo Pode Mudar – Capitalismo vs. Clima. Barcarena: Editorial Presença, 2016, pp. 654.


Sem comentários:

Enviar um comentário