Durante os primeiros meses, a parte mais
difícil da gravidez foi acreditar que tudo estava realmente normal e saudável.
Por muitos testes que recebesse com resultados tranquilizadores, preparei-me
para a tragédia. O que mais ajudava era caminhar e, durante as últimas semanas
de ansiedade antes do parto, acalmava os nervos caminhando, enquanto as minhas
ancas doridas deixassem, num trilho bem cuidado ao longo de um riacho intocado.
O riacho começa perto do cimo de uma montanha coberta de neve e a água límpida
precipitava-se de uma queda-d’água, acumula-se em dezenas de poças e flui através
de rápidos até finalmente desaguar no Pacífico.
Durante essas caminhadas, mantinha os olhos
abertos para juvenis de salmão-prateado a caminho do mar após meses de
incubação em estuários rasos. E imaginava os juvenis de salmão-prateado,
salmão-rosa e salmão-keta a nadarem vigorosamente pelos rápidos e quedas-d’água,
determinados a chegar aos locais de desova onde nasceram. Dizia para mim mesma
que era a determinação do meu filho. Era manifestamente um lutador, uma vez que
conseguira chegar até mim, apesar das dificuldades, também arranjaria maneira
de nascer com saúde.
Não é possível arranjar um melhor símbolo da
tenacidade da vida do que o salmão do Pacífico. Para chegar aos locais de
desova, o salmão-prateado subirá saltitantemente quedas-d’água gigantescas como
um canoísta louco em contramão e a esquivar-se de águias e ursos-pardos. No fim
da sua vida, o salmão gasta as suas últimas forças vitais para concluir a sua
missão. Os juvenis de salmão têm de sofrer uma transformação drástica (smolting) para preparar os seus corpos
para a transição da água doce para os oceanos, onde irão passar as suas vidas
até ser a sua vez de fazer a viagem rio acima.
Mas estes feitos triunfantes da biologia são
apenas uma parte da história da regeneração. Porque, como toda a gente que vive
em terra de salmão sabe, às vezes os rios de outono estão assustadoramente
vazios, cheios somente de folhas mortas e, eventualmente, um ou dois peixes
sarapintados. Os salmões são, na realidade, os nossos atletas olímpicos, sendo
a sua determinação uma das manifestações mais poderosas do planeta da vontade
de preservar o ciclo da vida – mas não são invencíveis. A força deles pode ser
derrotada pela sobrepesca, por explorações piscícolas que propagam
piolhos-do-mar que matam o salmão jovem em massa, pelas águas a aquecer que os
cientistas acham que poderão ameaçar o seu alimento, por explorações
madeireiras negligentes que deixam os rios de desova obstruídos por detritos,
por barragens de cimento que desafiam até o salmão-prateado mais acrobático. E,
é claro, podem ser travados de vez por derramamentos de petróleo e outros
acidentes industriais.
Razões pelas quais o salmão desapareceu de
cerca de 40% da sua ocupação histórica no Pacífico Noroeste e diversas
populações de salmão-prateado, salmão-real e salmão-vermelho estão sob
permanente ameaça e em risco de extinção. Para saber até onde é que estes
números nos vão levar, basta-nos olhar para a Nova Inglaterra e para a Europa
Continental, onde as migrações comerciais de salmão do Atlântico desapareceram
dos rios onde em tempos eram abundantes. Tal como os seres humanos, o salmão é
capaz de superar muita coisa – mas não tudo.
E é por essa razão que o final feliz da minha
própria história ainda me deixa pouco à vontade e me parece incompleta. Sei que
para algumas pessoas, a minha saga da fertilidade parece reforçar a ideia de
que a resiliência humana acaba sempre por sair vencedora, mas não é isso que
parece. Não sei porque é que esta gravidez vingou, assim como não sei porque é
que as anteriores falharam – nem eu nem os médicos, sejam eles da alta sejam da
baixa tecnologia. A infertilidade é apenas uma das muitas áreas em que nós
humanos somos confrontados com os nossos oceanos de ignorância. (…)
Voltar
à vida
No início de 2013, encontrei um discurso da
escritora e educadora Leanne Simpson, que tem origens nos Mississauga
Nishnaabeg, em que ela descreve os ensinamentos e as estruturas de governação
do seu povo da seguinte maneira: «Os nossos sistemas foram concebidos para
promover mais vida.» A afirmação fez-me parar. Dei-me conta de que este
objectivo orientador era precisamente a antítese do extrativismo, que se baseia
na premissa de que a vida pode ser drenada indefinidamente e que, longe de
promover a vida futura, é especialista em transformar sistemas vivos em lixo,
sejam ele os inúmeros «terrenos mortos» que orlam as estradas nas areias
betuminosas de Alberta, sejam os exércitos de pessoas descartadas que vagueiam
pelo mundo à procura de trabalho temporário, ou as partículas e gases que
abafam a atmosfera e que foram outrora partes saudáveis dos ecossistemas.
(…) Acabámos por ter uma conversa longa e
alargada sobre a diferença entre uma mentalidade extrativista (que Simpson
descreve sem rodeios como «roubar» e tirar coisas «de uma relação») e uma
mentalidade regenerativa. Caracterizou o sistema Anishinaabe como «uma forma de
viver destinada a gerar vida, não simplesmente vida humana, mas também a vida
de todas as coisas vivas». Trata-se de um conceito de equilíbrio, de harmonia,
comum a muitas culturas indígenas e que é frequentemente traduzido como «a boa
vida». Mas Simpson disse-me que preferia a tradução «renascimento contínuo»,
que ouvira pela primeira vez da colega escritora e ativista Anishinaabe Winona
LaDuke.
É compreensível associarmos atualmente estas
ideias a uma mundivisão indígena: foram sobretudo essas culturas que mantiveram
esta forma alternativa de ver o mundo vivo face às escavadoras do colonialismo
e da globalização empresarial. À semelhança dos preservadores de sementes que
protegem a biodiversidade da reserva global de sementes, outras formas de nos
relacionarmos com o mundo natural e uns com os outros foram protegidas por
muitas culturas indígenas, baseadas em parte numa crença de que virá o tempo em
que estas sementes intelectuais serão necessárias e o solo para elas
tornar-se-á mais uma vez fértil.
(…) Na verdade, o que está a surgir é um novo
tipo de movimento de direitos reprodutivos, que luta não só pelos direitos reprodutivos
das mulheres como pelos direitos reprodutivos do planeta como um todo – pelas montanhas
decapitadas, os vales submersos, as florestas abatidas, os lençóis freáticos
fraturados, as encostas esventradas, os rios envenenados, as «povoações do cancro».
Toda a vida tem o direito de se renovar, regenerar e curar.
Com base neste princípio, países como a Bolívia
e o Equador – com grandes populações indígenas – consagraram na lei os «direitos
da Mãe Terra», criando novos instrumentos jurídicos poderosos que garantem o
direito dos ecossistemas não só de existir como de «regenerar».*
[KLEIN,
2016: 528-532]
Pedro Cuiça © Montanha Sagrada (vulgo Serra de Sintra, 13/11/2016)
*Quando o Equador adotou uma nova Constituição em 2008 tornou-se o primeiro país a consagrar na lei os direitos da natureza. O artigo 71 da Constituição do país diz: «A natureza, ou Pachamama, onde a vida é criada e reproduzida, tem o direito a que a sua existência seja integralmente respeitada, bem como o direito à manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolucionários. Todas as pessoas, comunidades, povos ou nacionalidades podem exigir do poder público que estes direitos da natureza sejam respeitados.»
Fonte bibliográfica:
KLEIN, Naomi. Tudo Pode Mudar – Capitalismo vs. Clima. Barcarena: Editorial Presença, 2016, pp. 654.
Sem comentários:
Enviar um comentário