Nesta
época dita "balnear" – na qual grande parte das pessoas, para além de
irem a banhos, gozarão as suas férias – é suposto descansar e “pôr a leitura em
dia”!… Na sequência da publicação, no Facebook, de uma fotografia do Guia
de Montanha na praia, não resisti a “postar” um artigo que escrevi, em
2003, na revista Forum Ambiente (Literatura
de viagens – Viajar no Sofá) e a
caixa que o acompanhava (100 Livros de Viagem). Hoje, para “abrir
o apetite”, aqui fica Literatura de viagens – Viajar no Sofá
e amanhã publicarei a lista da centena de livros que espero venha a ser de
grande utilidade como sugestões para este Verão (e outras estações). Boas
leituras.
ÓAna Custódio (Julho, 2015)
Literatura de
viagens
Viajar no sofá
O desejo de
conhecer o que se esconde por trás da última montanha ou da linha do horizonte
pode-se tornar obsessivo. Uma sensação semelhante à de devorar uma boa prosa na
ânsia de desvelar o que se esconde nas páginas seguintes. No terreno ou nos
livros, viajar é preciso.
Os livros, tal como as viagens, constituem
oportunidades privilegiadas de descoberta, de iniciação, de conhecimento, de
aventura. Essa é a sua magia. As caminhadas não são apenas as que se processam no
mundo exterior. Os percursos interiores podem produzir exactamente o mesmo
efeito. As viagens que fazemos nos sonhos, nos devaneios enquanto despertos ou
nas leituras podem ser tão vivenciadas, tão concretas, quanto aquelas que se
processam nos vastos espaços geográficos.
A velha e frutuosa ligação entre a viagem e a
literatura estabeleceu-se pelo menos desde que Homero fez Ulisses voltar a
Ítaca. Mas as viagens interiores não se resumem às literaturas de viagem ou de
aventura. Muitos escritores ou obras literárias não gostam ou simplesmente não
se enquadram nessas designações e, no entanto, não deixam de proporcionar
excepcionais viagens interiores. A realidade e o sonho são, afinal, formas
complementares de “ir para fora cá dentro”. Fenómeno, aliás, bem expresso pelo
escritor Raúl Brandão em O Pobre de Pedir: «Notem que há factos que talvez nunca se
deram e em grande parte o conflito passou-se no meu íntimo. Mas nem por não se
realizar, o drama foi menos real. Foi talvez maior, porque decorreu sem entraves
na minha alma, desenvolvendo-se até onde quis desenvolver. Decidi em pensamento
as piores acções e as mais absurdas. Que importa que o drama se tenha ou não
exteriorizado?».
Enfim, a leitura constitui uma oportunidade única de
viajar sem sair de casa. Como disse Fernando Pessoa, é uma forma de «sentir tudo de todas as maneiras». Ou
então é uma forte inspiração, guia ou incentivo para abandonar o conforto do
lar, do conhecido, e partir por esse mundo fora rumo à aventura. Ultrapassar,
nas palavras de Júlio Carrapato, o estádio de «aqueles que, sem agir nem pensar, se limitam a ler os rabiscadores de
papel impresso».
Ir para fora cá
dentro
Viajar pelo mundo ou dentro de si mesmo é
fundamental para os processos de crescimento pessoal e de autoconhecimento. Porque
descobrir novas paragens, no terreno ou nos livros, pelo simples facto de tirar
a pessoa do seu quotidiano habitual, obriga-a a ultrapassar os seus costumeiros
horizontes.
Qualquer psicólogo, filósofo ou poeta sabe que o
simbolismo da viagem representa a procura e a descoberta de um centro
espiritual interior. A viagem exprime um desejo de transformação interior que
se projecta no desejo de transcendência. Como consequência, entende-se que
estudar, investigar, procurar, ler são também modalidades de viajar, ou seja,
equivalentes espirituais e simbólicos de uma mesma realidade que é a viagem.
Toda a viagem é, por sinal, um acto sagrado. Quem
viaja busca, mesmo sem o saber, a conexão com alguma forma de divindade. Por
isso, tantas epopeias religiosas e espirituais estão ligadas à ideia de viagem.
A busca da montanha sagrada ou do Santo Graal; os argonautas gregos à procura
do velocino de ouro; o herói Ulisses; os peregrinos de todos os tempos e
lugares que buscam Jerusalém, Roma, Santiago de Compostela ou outros lugares
santos. Todos os caminhos conduzirão ao centro espiritual.
Os peregrinos constituem um tipo especial de
viajantes, que aparentemente viajam no terreno mas que, na verdade, procuram
atingir lugares que se encontram do outro lado, do lado de lá, para além de… Os
peregrinos procuram, na viagem, transcender-se. A meta representada por
santuários, cidades ou montanhas sagradas constitui apenas parte do desafio. O
encantamento que distingue a experiência sagrada da profana manifesta-se mais
facilmente no tempo e no espaço libertados do trabalho e dos afazeres
quotidianos. Não porque o trabalho ou as experiências quotidianas não encerrem
componentes sagradas ou iniciáticas, mas porque geralmente são desempenhadas
num inconsciente estado de automatismo. É a viagem como expressão de mudança –
de lugares, línguas, costumes ou tradições – que funciona, por excelência, como
mecanismo propiciador de transcendência, de ultrapassagem de si próprio.
Cada viagem ou cada livro representa, pois, uma
possibilidade única de descoberta, mas todo o peregrino deve saber que a ânsia
de chegar compromete os resultados da experiência em si. Os verdadeiros
resultados surgem ao longo do trajecto geográfico ou da leitura. A chegada ao
destino ou ao final da obra literária é “apenas” o culminar da empresa, não
sendo geralmente o acontecimento mais importante. Tal como o fim de um livro de
viagens será certamente o começo de outro. Disse o filósofo chinês Lao Tzu,
seis séculos antes de Cristo: «Um bom
viajante não tem projectos determinados e não está ansioso por chegar».
Afinal, importante é compreender que toda a viagem no mundo exterior
corresponde a uma experiência no mundo interior e vice-versa. Toda a aventura
no mundo interior modifica a nossa percepção do mundo exterior, tal como o
inverso. Para a psique tanto faz se a experiência acontece no plano da
realidade concreta do mundo ou no plano da fantasia, do sonho e da imaginação.
O resultado final, como vivência, é idêntico, em tudo semelhante.
As grandes aventuras no terreno começam
frequentemente por uma intensa investigação de documentação escrita sobre os
objectivos em mente. Tanto viagens simples como exigentes expedições dependem
de planificações ajustadas e o conhecimento literário do local ou região onde
estas irão decorrer é fundamental. Mas há também quem se limite e fique
satisfeito por viajar simplesmente no plano imaginário. Tanto uns como os outros
serão “viajantes de sofá”, só que uns limitam-se a essa condição e outros
avançam para a materialização dos seus sonhos de aventura no terreno.
Viagens caseiras
Viale Moutinho, repórter do Diário de Notícias, numa
das suas crónicas (DN Ano 138º, nº 48775, 8 de Outubro de 2002) retrata de
forma magnífica um desses espécimes que poderemos designar como “viajantes de
sofá”. «Conheci um homem que, conforme os
seus circunstanciais interesses ou por entusiásticas sugestões de terceiros,
fazia dossiers pormenorizados sobre
determinadas regiões […] e depois fechava-se durante alguns dias num quarto. E
nesse quarto explorava imaginativamente os folhetos, as fotocópias de
enciclopédias, livros de viagem, romances de aventuras, gramáticas
esquisitíssimas, tudo quanto conseguia reunir. Quando regressava daquela
aventura, aparentava cansaço, mas também exibia felicidade, às vezes mais
magro, mais moreno, e uma vez houve que torceu um tornozelo ao cair de uma
ribanceira – que também as há na imaginação! E sempre trazia imenso para
contar. Quem não conhecesse o seu peculiar expediente de viajante – e poucos
eram, soube-o eu por involuntária inconfidência de uma filha –, ficava
fascinado a ouvi-lo narrar como se livrara de um bando de moscas venenosas no
ventre da pirâmide de Quéops, do seu encontro com o trineto do Tigre da Malásia
ou de um pequeno almoço a três, com Picasso e Dali».
Quem nasceu nos anos 60 lembra-se, certamente, do
sucesso dos livros de Lobsang Rampa durante a década de 80. O seu primeiro
livro, O Terceiro Olho – autobiografia de um monge tibetano que
cresceu no mosteiro Chakpori em Lassa – foi o começo de um profícuo trabalho
que levou à edição de mais uma dúzia de obras. O seu grande sucesso não foi
aparentemente afectado pela revelação que Lobsang Rampa não era monge tibetano!
Era, curiosamente, natural de Devon (Inglaterra) e chamava-se Cyril Henry
Hoskins. Este baseou os seus livros na imaginação e nos conhecimentos que foi
beber aos textos de Madame Blavatsky e Alexandra David-Néel. Esta última, sim,
viajou bastante pelo Tibete e foi a primeira mulher europeia a obter uma
audiência com um Dalai Lama, o décimo terceiro, que conheceu em 1912 quando
este se encontrava no exílio temporário em Darjeeling. Lobsang Rampa, ou
melhor, Cyril Hoskins era afinal um “viajante de sofá”. Mais um exemplo entre
tantos outros que, de forma explícita ou encapotada, lícita ou desonesta, vivem
intensas aventuras caseiras no conforto do sofá.
A visão do Tibete como local de excepção espiritual
generalizou-se sobretudo devido ao romance de James Hilton, The
Lost Horizon, que foi publicado em 1933. A história de Hilton falava de
quatro ocidentais que viajaram da Índia para um reduto situado nos Himalaias, o
mítico Shangri-La onde os habitantes levavam vidas dedicadas à arte e à
contemplação. O livro de Hilton obteve um imenso sucesso, foi adaptado ao
cinema e introduziu a palavra “Shangri-La” no léxico como sinónimo de uma
utopia pacífica, de paraíso terreal.
Todos os exploradores, aventureiros e viajantes
anseiam secretamente descobrir um dia um vale desconhecido, isolado do resto da
humanidade: o mito do reino perdido de Shangri-La. Só quem caminhou durante
dias por entre montanhas inóspitas ou vastos desertos sem ver vivalma pode
entender tal fenómeno. O desejo de conhecer o que se esconde por trás da última
montanha ou da linha do horizonte torna-se obsessivo. Algo de semelhante às
emoções sentidas por quem devora as linhas de uma boa prosa na ânsia de
desvelar o que se esconde nas páginas seguintes… O problema surge quando a
viagem ou o livro acabam, chegam ao fim.
Samuel Johnson, em A Journey to the Western Islands
of Scotland (1775), expressa bem a desilusão inerente à conclusão de
uma viagem, literária ou no terreno: «Ouviram-se
muitas vezes queixar de me sentir desapontado com livros de viagens;
infelizmente, receio que a própria viagem termine também em desapontamento.» No entanto, o final de uma viagem pode
ser encarado tão somente como o início de novos desafios, novas oportunidades
de descoberta. Como escreveu Saramago na sua Viagem a Portugal (1999):
«O fim de uma viagem é apenas o começo de
outra.» E assim recomeça o ciclo.
Pedro Cuiça (revista Forum Ambiente nº 87, Fev. 2003, pp. 72-77)
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