sexta-feira, 27 de junho de 2014

A Arte de Andar (II)

(…), não são apenas essas entidades reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”, não são apenas os outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma cultura oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as torrenciais chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da mão. A montanha também tem os seus pensamentos.
David Abram (1996): A Magia do Sensível


Ao entendermos “religião” na sua acepção etimológica de ligação (do latim religāre: ligar a, unir a, atar) o que nos ocorre é o acto de andar como actividade privilegiada de (re)ligação à sacralidade da natureza ou à própria divindade. É nessa acepção, aliás, que o caminhar visto como uma espécie de “ioga ambulatório” dá sentido a essa curiosa expressão, tendo em conta também a etimologia da palavra “ioga” (do sânscrito योग: unir ou juntar, entre outros significados).
A sacralidade da natureza é algo de evidente para as culturas indígenas genuinamente orais, nas quais o próprio mundo dos sentidos continua a ser a morada dos deuses e dos poderes numinosos. Esta forma de vivência é tão actual hoje em dia entre as tribos de caçadores e recolectores quanto o seria há milénios atrás (sobretudo entre os povos nómadas anteriores à invenção da agricultura), independentemente da sua estranheza para a maior parte dos ditos “ocidentais” modernos ou pós-modernos. Não olvidemos, porém, as origens históricas do pedestrianismo que, apesar de se ter iniciado à sombra do Iluminismo, foi, na verdade, fortemente influenciado pelo pré-romantismo e sobretudo pelo romantismo. Esta corrente de pensamento, que rejeitava precisamente o positivismo da época, enveredou por caminhos exóticos de subjectividade assumida, nos quais se enaltecia o individualismo a par do pitoresco da natureza selvagem. Nesse contexto, não será de estranhar a opção dos “passeantes de domingo” pertencentes à Walden Pond Association (séc. XIX): eram assim designados por nunca irem à igreja aos domingos, preferindo, ao invés, caminhar nos bosques. Afinal, esses transcendentalistas de Concord, ao belo estilo de Emerson e de Thoreau, não faziam mais do que maravilhar-se perante a sacralidade da natureza. É nesse contexto também que se poderá enquadrar a afirmação de Aldous Huxley (1894-1963): «O meu pai [Leonard Huxley (1860-1933)] considerava uma caminhada nas montanhas como o equivalente a uma ida à igreja.»
O romantismo e o naturalismo de muitos filósofos, artistas e até cientistas, que expressaram “sensibilidade” perante a natureza, viria a emergir na ecologia e, posteriormente, na ética ambiental. Nesse contexto, salienta-se a influência marcante que tiveram John Muir (1838-1914), no âmbito da protecção da natureza1, e Aldo Leopold (1887-1948), no que concerne à ética da Terra2. Nas décadas de 1950-1960, destaca-se Jack Kerouac (1922-1969), um dos membros da geração beat, ao dar uma especial enfase à beat-itude: um estado que seria alcançável através da sintonia com todas as “criaturas vivas e sensíveis”, o que implicava uma atitude simultaneamente de entusiasmo e de assombro face à natureza.
O filósofo e alpinista norueguês Arne Naess (1912-2008) lançou, a partir da década de 1970, o movimento da ecologia profunda, que excede largamente as fronteiras da ética, mergulha na ontologia e traduz-se na prática como um modo de ser (como um ecologismo)3. Este movimento, que pretende atingir a auto-realização do self (do “eu-próprio”), propõe uma metafísica da ecologia profunda: afinal um retomar da ideia de que tudo está interligado e é interdependente. Será igualmente de realçar o facto de muitos dos adeptos da ecologia profunda serem montanhistas ou pedestrianistas: Arne Naess, Gary Snyder, George Sessions, Bill Devall, etc..
No que concerne ao acto de andar a pé e à sacralidade da natureza merece também um especial destaque a denominada “ecologia reverencial” de Satish Kumar (1936-): um ex-monge jaina que caminhou, nos anos 60, desde a sua Índia natal até à Grã-Bretanha, e desde então tem viajado pelo mundo a pé.
Pedro Cuiça
(Solstício de Verão 2014)
Um pequeno trecho  da palestra "A Arte de Andar - Ética e Estética Ambientais" que decorreu, a 21 de Junho, no Complexo Municipal dos Desportos de Almada




Notas
1. John Muir, muito influenciado por Thoreau, fundou o Sierra Club (1892) e foi defensor da criação de parques nacionais, sendo um preservacionista assumido em oposição ao conceito de conservação da natureza defendido, na época, por Gilford Pinchot (1865-1946). Estes inauguram a polémica entre não-antropocêntricos e antropocêntricos: preservação versus conservação.
2. Aldo Leopold foi o grande inspirador da ética ambiental: a ética da Terra explanada no livro A Sand County Almanac (1949) – Pensar como uma Montanha (2008) –, onde defendeu vários conceitos recuperados pelo ecocentrismo, designadamente o de amor e respeito pela Terra, a Terra como um organismo, a extensão dos direitos à natureza, a consciência ecológica e o retorno a uma visão holística da natureza. Leopold, continuado por John Baird Callicot, apresenta uma ética da Terra, convictamente ecocêntrica, cujo conceito marcante é o holismo: visão do ser humano e da natureza como partes integrantes e interdependentes de um todo.
3. Arne Naess ao publicar The shallow and the deep long-range ecology: A summary (1973) lançou os fundamentos da ecologia profunda (deep ecology). Na sua vertente teórica apresenta-se como uma ecosofia (entendida como filosofia de vida orientada para a harmonia ecológica) e uma ecotopia (enquanto recondução do ser humano ao seu ethos: o lar-planeta Terra). O pluralismo é aceite dentro do movimento como um dos elos estruturantes e a diversidade é entendida como fonte de riqueza, mas as visões dos diversos adeptos e a interpretação das suas premissas dificulta a tentativa de definição da ecologia profunda.

...como uma Montanha


«(…), não são apenas essas entidades reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”, não são apenas os outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma cultura oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as torrenciais chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da mão. A montanha também tem os seus pensamentos.»
David Abram (1996): A Magia do Sensível

«Suspeito agora que, exactamente como uma manada de veados vive no temor mortal dos lobos, assim vive a montanha no temor mortal dos veados. E talvez com mais razão, pois enquanto um veado abatido pelos lobos pode ser substituído em dois ou três anos, uma cordilheira desarborizada por um excesso de veados não consegue reconstituir-se em tantas outras décadas.»
Aldo Leopold (1949): Pensar Como Uma Montanha

«do something for wilderness and make the mountains glad»
John Muir (in PISÓN & ÁLVARO, 2002) 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Becoming Animal

A obra do filósofo David Abram (1957-), inserida na corrente da ecologia profunda, distingue-se pela sua notória originalidade, designadamente no que concerne a aproximações a uma animalidade assumida, posicionamento traduzido em textos como Waking Our Animal Senses: Language and the Ecology of Sensory Experience (1997). Neste âmbito, destacamos um trecho do livro Becoming Animal que traduz precisamente essa linha de pensamento e que, paralelamente, aborda um assunto que nos é particularmente caro (apesar da sua elementar gratuitidade!*): andar a pé descalço...

«On some mornings I step outside before pulling on any socks or sliding my feet into their shoes. The soil presses up against my bare feet and shapes itself to them; the clumped grasses massage and wake up my sole. Sharp pebbles stab the thick skin. Drier, more resistant grasses prick and sometimes break under my weight – ow! – sending my feet back onto the smoother stones. Pale stones are cool to the toes, dark rocks warmer. My feet receive directives from the ground, turning away from the brown, brittle grasses, seeking the press of those green blades that tickle and play against the callused skin and then spring up again, slowly, after I pass. It feels good to bring my life into felt contact with these other lives, even if only for a moment.
But how does my weight feel to those grasses; how do my steps feel to the terrain itself as I walk upon it? As this question rises, I begin to sense the carelessness with which I’m commonly clomping around, greedily amassing sensations. My legs inadvertently slow their pace as the sensitive presence of the land seems to gather beneath my feet, the ground no longer a passive support but now the surface of a living depth; and so my feet abruptly feel themselves being touched, being felt, by the ground. My steps slow down further. Flat rocks and rough rocks, needles cast off by the pines, grit that clings between the toes as they flex against the land: each patch of ground requests a different kind of step, which my legs discover only in the doing. My feet are like ears listening downward, and a dark rhythm rises up into me from this contact – a pulse that slows down and deepens the private beat within my chest.
(…) An old, ancestral affinity between the human foot and the solid ground is replenished by the simple act of stepping outside without shoes.
Shoes, of course, are necessary accoutrements of civilization, eloquent in their simplicity; a number of Vicent’s canvases pay honor to their humble practicality. But we overuse them, and so forget that our feet – those downturned hands and the end of our hind legs – are sense organs as well as tools for transport.»

David Abram (2010): Becoming Animal – An Earthly Cosmology; New York: Pantheon Books, pp. 58-60


*Será digno de nota salientar que em língua inglesa "gratuito" e "livre" se expressam pela mesma palavra ("free"); essa coincidência leva-nos a pensar/questionar: essa gratuitidade não será precisamente uma forma (ou a forma) de nos conduzir a uma verdadeira liberdade?

terça-feira, 24 de junho de 2014

Vai mas é dar uma volta!


A Arte de Andar

 A Arte de Andar*


«Passear é, ao cabo e ao resto, a coisa mais simples que há no mundo: basta ter dois pés em bom estado. Para quê escrever tantas páginas acerca disso?» É verdade: o papel dos pés é espantosamente importante, e mais vale ter quatro do que dois. «A arte de passear faz-me pensar numa arte de dormir.» Encantado caro senhor sonâmbulo; que o sono vos seja agradável enquanto marchais!
Karl Gottlob Schelle (1802): A Arte de Passear

Kenneth White refere de forma sagaz que: «Se Thoreau utiliza os pés fá-lo, afinal de contas, em benefício da cabeça ou, digamos, do seu ser, do seu corpo-espírito inteiro. Não é um desportista que sai de casa para fazer quilómetros, não faz footing como costuma dizer-se. Pratica a caminhada inteligente.»1 De facto, o pedestrianismo está longe de ser apenas uma actividade puramente física. A arte de andar eleva um mero passeio ao estatuto de delicado exercício estético e/ou espiritual. É de todo espectável que queiramos beneficiar das impressões suscitadas pelos passeios e, ao aprofundar a natureza desse prazer múltiplo, multiplicá-lo e aumentá-lo ainda mais sob as mais diversas formas.
Os transcendentalistas de Concord (EUA) foram, nesse aspecto, notáveis ao assumirem sem rodeios implicações espirituais, estéticas e até éticas no que concerne ao aparentemente simples acto de andar a pé. De entre eles, Henry David Thoreau (1817-1862) destacou-se enormemente ao deixar uma marcante obra acerca dessa nobre arte, mormente Excursions2 e Walden; or, Life in the Woods3. A sua vivência intima no seio da natureza, nas margens do Walden, entre 1845 e 1847, revela uma irreprimível vocação para a caminhada que expressou de forma exemplar: «(…) tempo nenhum interferia de modo fatal nos meus passeios, ou antes, nas minhas saídas de casa, pois eu amiúde caminhava de doze a dezasseis quilómetros no meio da neve mais funda para ir ao encontro de um pé de faia ou de uma bétula amarela, ou até de um pinheiro velho meu conhecido»4.
No que concerne à necessidade seminal de andar e a caminhadas inteligentes não poderemos deixar de mencionar Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro (1850-1923). Tomás da Fonseca passeando uma tarde com Junqueiro, junto à foz do Ave, deu a conhecer o que esse poeta revelou sobre Antero de Quental acerca do seu costume de andar «léguas e léguas, até se perder por caminhos e fragas, donde voltava extenuado». Antero de Quental tinha por hábito «fazer largas digressões a pé pelos arredores de Coimbra, por necessidade de andar, para ouvir a harmonia das árvores e das fontes, parando para admirar os apoteóticos pôr-de-sol»5 e, dessa forma, entrar em profundas cogitações. O próprio Guerra Junqueiro confessou a importância que o andar desempenhava no seu processo criativo enquanto poeta: «Mergulhado, absorvido, assim, por êsse esforço mental, realizo, às vezes, longas caminhadas, marchas de léguas. (…) Nunca pude compor de outra maneira. (…) Não sei, mas sem dúvida o acto mecânico da marcha tem, sôbre certos espíritos, uma singular e definida influência.»6

CAMINHEIROS ANDANTES
Henry David Thoreau disse que só encontrou na vida uma ou duas pessoas que compreendiam a Arte de Caminhar, na acepção de saberem fazer o sautering.7 Esta curiosa palavra pode ser atribuída àqueles que andam em demanda da Terra Santa e/ou aos errantes “sem terra”. Ora a errância, ou a vadiagem (como gostava de lhe chamar o filósofo Agostinho da Silva), pode precisamente ser uma forma de poesia ou resultar, como atrás se referiu, numa criação poética. Errância no sentido de poder andar por aqui e por acolá… Caminhar sem destino pré-definido nem condicionalismos de tempo e, por isso, na plena liberdade de descobrir(-se). Algo que dificilmente se poderá expressar senão sob forma poética, razão pela qual tomamos a ousadia de encarar esses raros caminhantes como uma «grande raça» que parte recorrentemente «em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos»8. Uma espécie de cavalaria espiritual, de cavaleiros de uma nova ordem (ou, antes, antiga?), a que Thoreau apelidou de “caminheiros andantes”.
A demanda a que se faz alusão actualiza-se no limiar da experiência do tempo imediato (o presente) e do espaço real (concreto) através da caminhada, enquanto movimento, num tempo e espaço possíveis de atingir por meio de uma atenção plena. Uma situação de intensa exteriorização, em perfeita comunhão com o todo (que deixa de ser outro), e, simultaneamente ou de forma alternada, de profunda imersão em si (no self). Afinal, a caminhada pode adoptar facetas insuspeitas, como um ioga ambulatório. Não terá sido por acaso que Jack Kerouac (1922-1969) incitava à experimentação daquilo que designou “meditação do caminho”: «andar apenas fitando o caminho aos teus pés, sem olhar para os lados, e deixa-te cair num êxtase à medida que o chão vai desaparecendo».9 Não será certamente por acaso que no Budismo Theravada se pratica meditação a caminhar.
No limiar, a Arte de Andar consistirá na demanda de descondicionar-se e, ao fazê-lo, reencontrar-se num ser outro e/ou num ser em si. Atingir um estado de ser mítico, i.e. experienciar uma vivência, in principio, altamente propícia ao ser poeta/poema. A bem dizer, existe uma actividade praticamente desconhecida (porque oculta da maior parte dos pedestrianistas) passível de se designar “pedestrianismo esotérico”… 

Pedro Cuiça
(Solstício de Verão 2014)
*Um pequeno trecho  da palestra "A Arte de Andar - Ética e Estética Ambientais" que decorreu, a 21 de Junho, no Complexo Municipal dos Desportos de Almada


Notas
1. Cf. Notas introdutórias de Kenneth White “Caminhar com Thoreau” – Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 14.
2. Constantemente revista e aperfeiçoada pelo autor ao longo da década de 1850, Excursions converter-se-ia na mais proferida das suas palestras, tendo sido publicada postumamente em 1862. – Em Portugal foi editada sob dois títulos distintos: (1) Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995 e (2) Henry David Thoreau – Caminhada; Lisboa: Antígona, 2012.
3. Excursions apresenta estreitas afinidades com Walden; or, Life in the Woods (1854), a obra-prima de Thoreau. – Henry David Thoreau – Walden ou A Vida nos Bosques; Lisboa: Antígona, 1999.
4. Cf. Henry David Thoreau – Walden ou A Vida nos Bosques; Lisboa: Antígona, 1999, p. 291. – No original: «(…) no weather interfered fatally with my walks, or rather my going abroad, for I frequently tramped eight or ten miles through the deepest snow to keep an appointment with a beech-tree, or a yellow-birch, or an old acquaintance among the pines» –  Henry David Thoreau – Walden; or, Life in the Woods; New York: Dover Publications, 1995, p. 171.
5. Cf. Tomás da Fonseca – Guerra Junqueiro: Como êle escrevia – Considerações sôbre o manuscrito de “Os Simples”; Coimbra: Coimbra Editora, 1924, p. 8.
6. Cf. ibid., p. 9.
7. Cf. Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 21.
8. De a Mensagem de Fernando Pessoa (1934).
9. Cf. Christopher McDougall – Nascidos para Correr; Alfragide: Caderno, 2010, p. 188. – Citação de Jack Kerouac em Os Vagabundos do Dharma (1958) – Esta obra foi publicada pela Relógio D’Água Editores (2000) onde se encontra a mesma passagem traduzida de forma diferente (p. 246): «Experimenta a meditação dos trilhos, limita-te a andar a olhar para o trilho aos teus pés e não desvies o olhar e mergulha num transe enquanto o chão passa por debaixo de ti.»


segunda-feira, 23 de junho de 2014

A Thousand-Mile Walk

John Muir (1838-1914), para além de ter sido um inveterado caminheiro, fundou o famoso Sierra Club e foi um destacado pioneiro na criação de parques nacionais nos Estados Unidos. Muir foi um convicto preservacionista, em oposição ao conceito de conservação do ambiente defendido por Gilford Pinchot (1865-1946). Terá sido com esses protagonistas que se “inaugurou” a polémica entre concepções não-antropocêntricas e antropocêntricas: preservação versus conservação.

Na linha dos Transcendentalistas de Concord, como Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoreau (1817-1862), Muir cultivou uma profunda ligação com a natureza, com assumidas facetas de ordem espiritual. A dimensão sagrada da natureza foi amplamente expressada em diversas obras desse autor, tal como o seu entusiasmo pelo caminhar. Neste contexto, deixamos aqui um excelente exemplo: A Thousand-Mile Walk to the Gulf (1916). 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Palestra


O pedestrianismo está longe de ser uma actividade puramente física. A arte de andar eleva um mero passeio ao estatuto de delicado exercício estético e ético, com inevitáveis implicações ambientais. É de todo espectável que queiramos beneficiar das impressões suscitadas pelas caminhadas e, ao aprofundar a natureza desse prazer múltiplo, assumir, sem rodeios, implicações espirituais, estéticas e éticas no que concerne ao aparentemente simples acto de andar a pé…

Karl Gottlob Schelle, em A Arte de Passear (1802), aflora de forma exemplar essa matéria: ««Passear é, ao cabo e ao resto, a coisa mais simples que há no mundo: basta ter dois pés em bom estado. Para quê escrever tantas páginas acerca disso?» É verdade: o papel dos pés é espantosamente importante, e mais vale ter quatro do que dois. «A arte de passear faz-me pensar numa arte de dormir.» Encantado senhor sonâmbulo; que o sono vos seja agradável enquanto marchais!»» E Kenneth White, na introdução da obra Caminhar, acrescenta de forma sagaz: «Se Thoreau utiliza os pés fá-lo, afinal de contas, em benefício da cabeça ou, digamos, do seu ser, do seu corpo-espírito inteiro. Não é um desportista que sai de casa para fazer quilómetros, não faz footing como costuma dizer-se. Pratica a caminhada inteligente.»

No que concerne à necessidade seminal de andar e a caminhadas inteligentes, ir-se-á abordar os Transcendentalistas de Concord, sem deixar de mencionar as interessantes experiências de Antero de Quental ou de Guerra Junqueiro, entre outras facetas da arte de caminhar.

domingo, 8 de junho de 2014

Walk about





O caminho estreito

Também esta cabana de colmo
se há-de transformar
em casa de bonecas

Que glória
as folhas verdes as folhas novas
sob a luz do Sol

Nem o picanço
tocará esta ermida
suspensa entre as árvores de Verão

Ficou plantado o arrozal
quando me despedi
do salgueiro

O berço da poesia
os cantos dos plantadores de arroz
no longínquo norte

Mãos que hoje plantam arroz
outrora ágeis desenhos
imprimiam como uma pedra

Das cerejeiras em flor
ao pinheiro de dois troncos:
três meses

Criadoras de bichos da seda
as suas roupas
aroma de antiga inocência

Na frescura
me estendo
como no meu leito

Quietude:
as cigarras escutam
o canto das rochas

O cálido dia:
o rio Mogami
deita-o ao mar

Cabanas de pescadores:
apanhando a frescura do entardecer
estendidos sobre as portas

Os ninhos de "misagos"
sobre uma rocha no mar:
jurariam as ondas não lhes tocar

O Sétimo Mês
a noite do sexto dia
não me parece a de sempre

Penetro no aroma do arrozal
à minha direita
a cólera do mar

O sol arde
sem compaixão
Mas o vento é de Outono

Que nome delicado
O vento entre os pinheiros
os trevos e os juncos

Se hei-de morrer no caminho
que seja entre os campos de trevo

Hoje o orvalho
apagará o teu nome
do meu chapéu

Toda a noite
escutei
o vento de Outono na montanha

Matsuo Bashô

sábado, 7 de junho de 2014

Portugal, a paradise for walkers

Uma homenagem ao espaço


Os Caminhos Desapareceram da Alma Humana



Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um p...onto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, de uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.

Milan Kundera

DR© Serra dos Candeeiros

Gran Senda de Málaga




Durante as XXI Jornadas Estatales de Senderismo - que se realizaram, em Novembro de 2013, em Vigo - tive a oportunidade de conhecer o projecto da Grand Senda de Málaga, apresentado por um amigo e companheiro "destas andanças": Juan López. Trata-se  de um percurso de longo curso implementado na Andaluzia, que já foi entretanto inaugurado e se encontra neste momento em plena promoção... Mais uma iniciativa de grande abrangência, no âmbito do pedestrianismo e dos percursos pedestres, com a qualidade a que os andaluzes já nos habituaram, na sequência de um Eurorando 2011 ou de um IV Seminario Internacional sobre Senderismo en Europa (Málaga, 2008), entre outras iniciativas.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

To You

Whoever you are, I fear you are walking the walks of dreams,
I fear these supposed realities are to melt from under your feet and hands;
(...)

Walt Whitman: Leaves of Grass (1900)


Pobres milionários

Eu e a minha mulher fizemos uma excursão curiosa. Demos um passeio a pé na orla do deserto do Saara, no ponto onde ele se transforma na aridez pedregosa dos Montes Aures. Levávamos duas mulas para o transporte do material de campo e dois árabes armados a servirem de guias e de guardas.
No trajecto cruzámos a estrada feita pelos franceses que leva à cidade do deserto chamada Bizcra, e nela, em lugar das costumadas fiadas de camelos, vimos automóveis atravessando a planície como bólidos.
Dentro viam-se "turistas" de antolhos e véus, levados à desfilada para o seu destino - o grande Hotel de Bizcra - sem darem pelas alegrias da caminhada, de conseguir o próprio sustento (até ao ponto de procurar no solo leves fendas que revelam trufas na terra) e prepará-lo ao ar livre e dormir no chão à noite sob o céu estrelado.
Ao vê-los, ambos exclamamos ao mesmo tempo: "Pobres milionários"!

Baden-Powell: A Caminho do Triunfo; Edições Flor de Lis (1974)
Original: Rovering to Sucess (1922)


Percursos Balizados

A parte presencial do curso já foi, agora segue-se a elaboração dos projectos de implementação de percursos pedestres até dia 30 de Setembro...