A fechar o mês de Santiago e a coincidir com o começo da peregrinação que empreendemos no ano transacto, publicamos um excerto da obra Imagens
e Reflexos do Imaginário Português, da autoria de Gilbert Durand e
prefácio do insigne Mestre Lima de Freitas. Na sequência de mais de um milénio
de tradição cavaleiresca, num blogue assumidamente de “Caminheiros Andantes” (ou
de “cavaleiros apeados”, como se queira), mais do que (re)lembrar pretendemos (ou
gostaríamos) que este texto suscite (ou suscitasse) a necessária e devida curiosidade por
antigas “coisas” (!) afinal tão presentes.
Mestre Lima de Freitas © Estudo para D. Sebastião (1987)
A
PEREGRINAÇÃO
(...) “Cruzar-se” é partir para um combate santo, uma
justa reconquista do túmulo de Cristo, e ao mesmo tempo fazer a famosa peregrinação
à Terra Santa. Mas não é a Cruzada uma extrapolação da reconquista? Ora a
reconquista em terra ibérica vai situar o centro da terceira prestigiosa
peregrinação da cristandade no Oeste da Europa, na Galiza, centro que irá
literalmente irrigar toda a Europa ocidental através das grandes vias de
peregrinação que convergem para Santiago.
Não esqueçamos igualmente que o famoso Monte
Saint Michel “no perigo do mar”, dedicado ao Arcanjo chefe das milícias
celestes, era um dos grandes centros de peregrinação da França, também ele no
Oeste da Europa e lugar onde a crença céltica situa a ilha de Avallon, no qual
os mortos esperam a Ressurreição.
Mas o caso de São Tiago Maior e do seu túmulo
em Compostela é paradigmático: por vezes o Santo é representado como “matamouros”,
de espada em riste, a cavalo – muito próximo da figuração equestre do Imperador
Constantino, tão célebre no Poitou e em Saintonge no séc. XII (São Nicolau de
Civray, Parthenay le Vieux, Saint Jovin de Marne, Aulnay, Sainte Croix de Bordéus,
etc..) – outras vezes, sobretudo a partir do séc. XIII, como peregrino a pé,
coberto pelo grande “sombrero” ornado com a concha, apoiado no bordão, da
cabaça e alforge, abrigando porventura alguns peregrinos debaixo da sua capa
(como no baixo-relevo do séc. XVII do Museu de Bona). Ao considerarmos a lista
das obras de arte consagradas a São Tiago Peregrino verificamos que se trata,
as mais das vezes, de estátuas anónimas e populares, e menos de obras de
grandes pintores (à parte o Guido Reni do Prado e o Rembrandt da colecção
Stephen C. Clark de Nova Iorque). O Peregrino aparece de algum modo como a face
plebeia do Cavaleiro. Donde a extrema difusão do culto e das múltiplas
relíquias do Santo Peregrino: Paris possuía três igrejas consagradas a São
Tiago, e em toda a Europa se manifestava o seu culto: nos Países Baixos, na
Alemanha, na Inglaterra, em Portugal – onde é o patrono de Coimbra – em Roma,
Veneza, Milão, etc.. O culto deste santo foi sempre crescendo do século XII até
ao século XIV, depois declina no séc. XVI quando a voga das peregrinações e o
espírito das cruzadas desaparecem.
Mas há algo ainda mais interessante: a captação
pela Cavalaria, na rota francesa da peregrinação, de uma santa padroeira numa
das últimas etapas antes da travessia dos Pirinéus. Tal foi o destino de Sainte
Foy de Conques, na Rouergue, a princípio insignificante. Nada parecia
predestinar (mas veremos já que só na aparência, e não certamente nas razões
profundas) nessa menina mártir de Agen uma das Santas Padroeiras da Cavalaria!
Como o diz, com graça, Louis Réau, “o maior milagre de Sainte Foy é seguramente
a prodigiosa extensão do culto prestado na Idade Média a uma pequena santa
local e sem realidade histórica (sic)…”.
Cruzados e peregrinos propõem o culto da menina ao longo de todo o “Camino francès”: em Roncevaux, na
própria cidade de Compostela, na Normandia (em Conques), em Libourne, nos
Baixos Pirinéus, na Haute Garonne, no Lyonnais, na Tarentaise, na Brie, na
Beauce, em Londres, em Liège, na Itália, na Espanha e até – mais tarde – em Bogotá…
Notemos de passagem que esta santa padroeira dos Cruzados é igualmente, e curiosamente,
padroeira das parturientes, tal como São Leonardo de Noblac, no Limousin.
Reza-se tanto à santa como ao santo para pedir o “livramento” dos cruzados
cativos, cujas cadeias e correntes adornam, em ex-votos, os seus santuários.
Veremos a seguir a importância deste culto do “cinto de Sainte Foy”.
Tentemos
compreender, se não explicar, o destino retumbante e o sucesso da donzela de
Rouergue. Antes de mais nada, evidentemente, há o nome: a Idade Média é sôfrega
de homónimias e de trocadilhos: em Conches (séc. XVI) a pequena santa,
confundida com uma certa Santa Foi de Roma, tem por mãe Santa Sofia… Mas este
jogo de palavras não basta para explicar a extraordinária difusão e sobretudo a
introdução da jovem mártir na mesnada santa dos Cavaleiros. A protecção das
parturientes pela própria padroeira das Cruzadas e o culto do “cinto” põem-nos
numa pista de interpretação mais interessante: encontrámos já o culto do “cinto”
e as mesmas atribuições maiêuticas em Santa Margarida de Antioquia, matadora de
sáurios ligada a S. Jorge, o Grande Patrono da Cavalaria. Amplifiquemos a
comparação: Santa Margarida é uma “princesa” e portanto tem a cabeça cingida
por uma coroa, de pérolas bem entendido (margarida = pérola) – sublinharemos adiante
a importância deste pormenor – pérolas “marinhas” que a confundem com Santa
Pelágia de Antioquia (pelagia = mar) e com Santa “Marinha” de Orense, em
Espanha. O que há de notável, porém, é que a pequena Santa de Rouergue é,
também ela, incompreensivelmente coroada, como se vê no celebérrimo relicário
de Conques (séc. X), no vitral da catedral de Chartres (séc. XIII) – onde uma
pomba desce do céu com uma coroa cravejada de pedras preciosas a fim de coroar
a pequena mártir –, ou na estatueta de Pierre Fréchieu (séc. XV) do Tesouro de
Conques… Santa Foy, como Santa Margarida, foram convertidas pelas respectivas
amas de leite; ambas foram desejadas por “pagãos”, uma por Blibrius, outra pelo procônsul Daciano;
ambas sofreram um rôr de suplícios: atenazadas, queimadas e por fim
decapitadas.
Mas, sobretudo, ambas são invocadas – donde a
devoção pelos seus “cintos” – para alívio pronto das parturientes. A “contaminação”
hagiográfica não deixa dúvidas, quanto a nós: quer uma, quer outra são “princesas”,
ambas virgens e ambas “atenazadas” nos seios, ambas santas protectoras do parto…
Talvez não seja indiferente lembrar aqui a filiação “sofiânica” da santinha de
Rouergue. Por detrás da carga de superstições populares desenha-se uma
interpretação, que começa a dar justificação ao facto das duas virgens mártires
estarem ligadas à mesnada da santa cavalaria. (…)
A confusão entre a cavalgada errante do
cavaleiro e a peregrinação é, pois, extremamente instrutiva: mostra-nos que o
carácter errante dos Cavaleiros – de Gauvin a Perceval nas duas “Continuações”
do Conto do Graal – é apenas aparente. Na verdade essa “errância” tem a ver com
a demanda alquímica, como mostrou P. G. Sansonetti, quer mais simplesmente com
uma “peregrinação” iniciática ou, pelo menos, “iluminativa”. Como já o provou
Georges Suby, bem cedo, a partir do Pontifical
romano-germanique de Mayence, do século X, a cavalaria tornou-se uma ordo, foi “ordenada”. Essa ordem não
parou de crescer ao longo dos séculos XI e XII, reforçada pela confluência do
sacral e do militar nas grandes ordens religiosas e guerreiras. Não espanta,
por isso mesmo, ver confundidas na crença popular a via espiritual do peregrino
e a demanda do cavaleiro. Ambas constituem uma “marcha” – à margem tanto do confortável clericato como da
sedentarização urbana da burguesia nascente – unidas numa “demanda” cujo tipo perfeito é a demanda do Graal. O carácter “errante” da cavalaria que D. Quixote, o
derradeiro cavaleiro, retomará com desesperada magnificência, é de natureza
igual à da peregrinação espiritual. (…) [DURAND, 2000:
113-116]
Armando Romanelli de Cerqueira © Don Quixote (1974)
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
DURAND, Gilbert. Imagens e Reflexos do Imaginário Português.
Lisboa: Hugin Editores, 2000, pp. 224. ISBN 972-8310-23-4
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