terça-feira, 1 de agosto de 2017

D'o Silêncio

Nicholas Roerich © O Silêncio do Filósofo (1940)


«As palavras que jamais foram pronunciadas são as flores do silêncio.»
Provérbio Japonês

«(…) our chiefest secret place of silence must be within the soul rather than without.»
Cisneros (1929: 196)

«A música é a irmã perfeita do silêncio.»
John O’Donahue (Facebook via Alexandre Gabriel)

O primeiro sentido da palavra “silêncio” (do latim silentium) é a capacidade de “calar-se”, de permanecer mudo (SMEDT, 2001: 11). Algo aparentemente fácil, mas que, na verdade, implica um resoluto autodomínio: conhecimento, posse e dom de si mesmo (VASTO, 1978: 119). Calar-se serve, desde logo, para guardar segredo. O segredo ou reserva será um meio de defesa… Como diz a assertiva sabedoria popular: «Pela boca morre o peixe». É costume considerar-se que há três coisas que as pessoas têm dificuldade de fazer e manter segredo é uma delas, a par de conhecer-se a si próprio e vencer o apetite. Atente-se que secretismo não se trata de mentir por omissão e muito menos deliberadamente. Um “Homem secreto” deverá ser precisamente o contrário de um hipócrita, de um “homem da mentira” (na acepção de Scott Peck, 2001): este esconde os defeitos e as culpas, aquele o que tem de melhor (VASTO, 1978: 129).
O silêncio é também essencial no âmbito da aprendizagem em determinadas ordens esotéricas, como por exemplo acontecia entre os antigos pitagóricos, e é por isso que os neófitos são convidados «a meditar, ouvir, calar-se» (SMEDT, 2001: 14). «O silêncio é de ouro e a palavra de prata»; i.e., não se trata de “se calar”, expressão deselegante e ademais incorrecta entre Homens de Bem; trata-se apenas e tão-somente de exercer o justo equilíbrio, da prudência e da temperança, no uso da palavra e do silêncio. Trata-se de optar, deste modo, por não falar, parafraseando um dito Sufi, «se a palavra que vai dizer não for mais bela do que o silêncio». Tal como se pode decidir proferir palavra caso haja algo a afirmar que mereça realmente ser ouvido. Deste modo se refina a fortaleza de carácter, apartando-se de “palavreado” inoportuno ou, mais grave, indecoroso.
O silêncio é igualmente a base da introspecção, meditação, labor sobre si próprio. É o silêncio que propicia o ambiente adequado ao «Ora et Labora» de S. Bento (séc. VI): a “acção directa”, simultaneamente operativa e especulativa, sobre o templo ou laboratório (de labor + oratório) de si mesmo, lugar de profundas operações e laboriosas transformações no âmbito do aprimorar da “matéria”. Silêncio que não se resume apenas à renúncia da palavra, mas igualmente à ausência de ruído. Calar-se não só para se ouvir a si próprio e ao(s) outro(s), mas também silêncio para ouvir a voz do Todo. O silêncio é o momento em que Deus se reconhece em cada um de nós (BOYER, 2017). O(u)rar e O(b)rar, enquanto exercícios diários de aperfeiçoamento assentes na sabedoria milenar do silêncio. Se necessário for, retirando-se na qualidade de silenciário, através da experienciação temporária de “voto de silêncio”, para mergulhar nas profundezas do mysterium tremendum et fascinanspara ouvir a Voz do Silêncio.
O filme Silence (Silêncio), do realizador Martin Scorsese, que estreou em Portugal no dia 19 de Janeiro de 2017, aborda precisamente a (re)ligação a Deus, ou a ausência desta, justamente no contexto do “vazio”: «– Rezo, mas estou perdido. – Estarei apenas a rezar ao Silêncio?». A resposta assenta na Esperança e, invariavelmente, no exercício do mister e na oração com base no silêncio: Ora, lege, lege, lege, relege, labora et invenies (Ora, lê, lê, lê, relê, labora e encontrarás) – máxima do Mutus Liber (o Livro Mudo da Alquímia). O silêncio sagrado é o silêncio que permite fazer passar, sem perturbações, a mensagem essencial (AUGUSTO, 2014: 60). Faça-se, pois, silêncio!
Silêncio, que se vai cantar o fado


Nicholas Roerich © Turquestão - Silêncio da Montanha (1937)

A chuva parou tão de repente como tinha começado. De novo a pradaria se tingiu de um branco pálido e os pássaros voltaram a cantar, como se tivessem despertado do sono naquele momento. Pesadas gotas continuavam a cair das folhas das árvores. Enxuguei a água que me banhava os olhos e aproximei-me do casebre. Apenas atravessei a porta, senti um cheiro pestilencial e vi uma nuvem de moscas à entrada, fervilhando em torno de um excremento humano.
Concluí imediatamente que alguém havia estado ali há pouco, talvez a descansar, para prosseguir depois a caminhada. Sinceramente, irritou-me que esse alguém fosse tão ordinário ao ponto de utilizar aquele único refúgio para semelhante efeito. A situação, todavia, tinha o seu quê de caricato, e desatei a rir. E menos apreensivo fiquei a respeito de um tal desconhecido.
Penetrando melhor no casebre, notei que havia lume debaixo das cinzas. Aproveitei o calor para secar as roupas encharcadas. Mesmo demorando algum tempo, conjecturei que não teria dificuldade de alcançar o homem que me tinha precedido, pois era evidente que não caminhava apressado.
Saí da arribana. A planície e o arvoredo que me tinha abrigado estavam banhados por uma luz dourada, e a folhagem, agora seca, rumorejava suavemente ao entrechocar-se, como que batida por uma chuva de areia.
Peguei num ramo seco que me servisse de bordão e prossegui a caminhada. Andando, atingi finalmente a ladeira de onde podia ver ao fundo a linha da costa.
(…) Violentas emoções me encheram o peito quando, encharcado pela chuva e apoiado ao bordão, corri pela encosta abaixo, escorregando aqui e além, (…) [ENDO, 2010: 111-113]

De noite, sentado na cama, com o arrulhar de uma rola no arvoredo a cortar o silêncio profundo, sentia o rosto de Cristo olhá-lo fixamente. Os olhos azuis transpirando piedade, os lineamentos serenos, compunham um rosto que lhe inspirava confiança. «Senhor, nunca nos deixarás sós», murmurava ele, olhando intensamente para esse rosto. E imaginava a resposta: «Não, não vos abandonarei jamais.» Estendendo a cabeça, apurava o ouvido para melhor escutar essa voz, mas a única coisa que ouvia era o arrulhar da rola. A escuridão era densa, profunda. [ENDO, 2010: 156]

O padre permanecia sentado, as costas arqueadas batidas pelo clarão prateado do luar que lhe entrava pelas grades. A parede reflectia-lhe os ombros descarnados. De vez em quando, sobressaltava-se. Era quando lhe chegava aos ouvidos o súbito restolhar de algum insecto na folhagem do bosque.
Fechando os olhos, todo ele se diluiu na densa escuridão envolvente. Nessa noite, em que todos os que conhecia já dormiam profundamente um outro sono, trespassava-lhe o coração a lembrança de uma outra noite. Prostrado no chão moreno de um Jardim que absorvera todo o calor do dia, só, apartado dos discípulos que dormiam chumbados à terra, um homem tinha dito: «A minha alma está triste até à morte.» E o suor desse homem escorria-lhe pela fronte em gotas de sangue. Era esse o rosto que tinha agora diante dos olhos. Centenas de vezes lhe aparecera em sonhos, sofredor, coberto de suor, mas, inexplicavelmente, sempre fugidio, sempre perdido na lonjura. Só esta noite, e pela primeira vez, tinha podido concentrar o olhar nesse rosto emaciado e doloroso.
Teria também esse homem tremido de pavor aquela noite perante o silêncio de Deus? Aterrava-o admitir semelhante coisa. [ENDO, 2010: 195]

Nicholas Roerich © Cristo no Deserto (1933)

De novo, ouviu o guarda ressonar. Desta vez, era tal qual o rumorejo de um moinho de vento. O padre sentou-se no chão encharcado de urina e riu como um idiota. Que bruto devia ser o tipo! Sem ter por que temer a morte, ressonava estupidamente, percorrendo todas as gamas do registo sonoro. Dormia como um cevado, fragorosamente, a boca escancarada. Parecia-lhe ver com os próprios olhos a cara do guarda: um carão gordanchudo, como um odre de saqué… A personificação, em suma, do homem enfartado. E todavia, para as suas vítimas potenciais, esse rosto havia de ser tremendamente cruel. Não, decerto, uma crueldade requintada, aristocrática, mas boçal como a de um labrosta tratando reses ou criaturas a ele inferiores. Tipos desses vira-os ele por terras de Portugal e conhecia-os bem. Também agora este indivíduo não fazia a mínima ideia do sofrimento que podia causar aos demais com a sua grosseria. Também a um outro homem, cujo rosto era o mais belo no sonho dos homens, outros homens, a este semelhantes, lhe haviam dado a morte.
Tornava-se-lhe irritante um ruído tão grosseiro. E logo numa noite daquelas, a mais cruel da sua vida! Parecia-lhe mesmo que escarneciam dele. Quando o ultraje cessou, bateu forte na parede, com o punho. Mas os guardas não se levantaram… tal como os discípulos no horto de Getsémani, profundamente adormecidos, em absoluto indiferentes ao tormento do mestre. E de novo bateu com força na parede da cela.
– Que é padre, que é? – Era o intérprete: o gato a moer a presa… – Está assustado, é isso? Era bem melhor que o senhor fosse menos teimoso. Diga uma só palavra, homem! Diga que abjura e tudo fica arrumado. Desafogue essa tensão acumulada e será outro!
– Era só para dizer que não suporto por mais tempo esse tipo que está para aí a ressonar – respondeu o padre, no escuro.
Caiu das nuvens o intérprete, verdadeiramente siderado…
– A ressonar? Essa é boa!... O senhor ouviu daí, Sawano?...
O padre não sabia que Ferreira estava perto do intérprete.
– Sawano, diga-lhe o que é… Explique-lhe…
A voz que, anos atrás, ouvia diariamente soou aos ouvidos do padre débil e triste:
– Ninguém ressona aqui. É o estertor dos cristãos pendurados na fossa!... [ENDO, 2010: 229-230]

Quando o padre assentou o pé no fumie nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou. [ENDO, 2010: 237]

Nicholas Roerich © Manhã - Silêncio Violeta (?)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· AUGUSTO, Carlos Alberto. Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014, pp. 96.
· BLAVATSKY, Helena (1899). A Voz do Silêncio. São Paulo: Editora Ground, 2002, pp. 112. ISBN 85-7187-094-2
· BOYER, Remi. Palestra, no âmbito do relançamento do livro A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência (editora Zéfiro), proferida no dia 24 de Abril de 2017, na sede da AMORC em Lisboa
· CISNEROS, García Jiménez de (1500): Book of Exercises for the Spiritual Life. Montserrat: Monastery of Montserrat, 1929, pp. 338.
· ENDO, Shusaku. Silêncio. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010, 2ª ed., pp. 272. ISBN 978-972-20-4135-5
· PECK, Scott (1985). Gente da Mentira – A Esperança para Curar a Maldade Humana. Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 360. ISBN 972-8541-276-9
· SMEDT, Marc de. Elogio do Silêncio. Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 216. ISBN 972-8541-25-2
· VASTO, Lanza del. Não-violência e Civilização. Lisboa, 1978.

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