terça-feira, 25 de julho de 2017

D'a (pós)modernidade

Os seres humanos são animais gregários que, desde as suas mais remotas origens, viveram em grupos/tribos, não sendo de todo frequente ou usual o individualismo, o isolamento ou a vida solitária. Essas são tendências relativamente recentes, em termos evolutivos enquanto espécie, tal como muitas concepções alternativas* que – independentemente de pretensos optimismos, pessimismos ou nem uma coisa nem outra – não passam de evidentes manifestos de basilar ignorância, de asininas confusões ou até de alarves parvoíces. A separação/especialização de tarefas já ocorria no paleolítico, é anterior ao género Homo e até se encontra esboçada em comportamentos de outras espécies actuais. E daí?... Na verdade, não se deveria confundir um bife à milanesa com um bife sobre a mesa ou uma obra prima com a prima do mestre de obras! Mas a realidade é complexa (ou somos nós que a complicamos?) e, portanto, dada a equívocos...


"Imagine o leitor que é um veado. Tem, no fundo, quatro coisas a fazer durante o dia: dormir, comer, evitar ser comido e socializar (o que significa marcar um território, perseguir um elemento do sexo oposto, cuidar de uma cria, o que seja). Não existe qualquer necessidade real de fazer muito mais. Agora imagine que é um ser humano. Mesmo que se atenha às coisas básicas, tem bastante mais que quatro coisas para fazer: dormir, comer, cozinhar, vestir-se, cuidar da casa, viajar, lavar, fazer compras, trabalhar… A lista é quase interminável. Como tal, os veados deviam ter mais tempo livre do que os seres humanos, contudo são as pessoas, não os veados, que encontram tempo para ler, escrever, inventar, cantar e navegar na internet. De onde vem todo este tempo livre? Vem da troca e da especialização, bem como da divisão do trabalho daí resultante. Um ser humano pede a outrem que o faça por ele, enquanto se dedica a fazer outra coisa pelo outro – e, dessa forma, ambos ganham tempo.
Temos pois que a autossuficiência não é o caminho para a prosperidade: «Quem teria avançado mais ao fim de um mês», perguntava Henry David Thoreau: «O rapaz que fez o seu próprio canivete com o minério que cavou e fundiu, lendo tanto quanto seria necessário para o fazer – ou o rapaz que, entretanto, assistiu a aulas de metalurgia e recebeu um canivete Rodgers do pai?» Ao contrário do que diz Thoreau, é o último, de longe, porque lhe sobra tempo para aprender outras coisas. Imagine se tivesse de ser completamente autossuficiente (não só fingir que o é, como Thoreau). Tem de se levantar de manhã todos os dias e abastecer-se apenas com os seus próprios recursos. Como passaria o seu dia? As quatro principais prioridades seriam alimentação, combustível, vestuário e abrigo. Tratar do quintal, dar de comer ao porco, ir buscar água ao regato, apanhar lenha na floresta, lavar umas batatas, acender uma fogueira (sem fósforos), cozinhar o almoço, reparar o telhado, ir buscar fetos frescos para uma nova cama, talhar uma agulha, fiar linha, coser uma pele para fazer sapatos, tomar banho no rio, fazer um pote de barro, apanhar e cozinhar uma galinha para o jantar. Não há velas, nem livros para ler. Não há tempo para fundir metal, perfurar em busca de petróleo ou viajar. Encontra-se ao nível da subsistência e, sinceramente, embora de início possa exclamar, como Thoreau, «como é maravilhoso escapar ao bulício», passados alguns dias a rotina tornar-se-ia deveras soturna. Se deseja, nem que seja a mais ínfima melhoria na sua vida – utensílios metálicos, pastas de dentes ou iluminação, por exemplo – algumas tarefas terão de ser executadas por outra pessoa, porque não terá tempo para as fazer pessoalmente." [RIDLEY, 2013: 49-51]

Pedro Cuiça © Museu Arqueológico do Tirol do Sul (Bolzano - Itália, 2016)

"Oetzi, o «homem do gelo» mumificado encontrado nos Alpes em 1991, transportava consigo tanto equipamento quanto os caminhantes que o encontraram. Tinha utensílios feitos de cobre, sílex, osso e seis tipos de madeira: freixo, viburno, lima, cornizo, teixo e bétula. Usava roupas de erva entrelaçada, casca de árvore, tendões e quatro tipos de cabedal: pele de urso, couro de veado, couro de cabra e pele de veado. Levava consigo duas espécies de fungos, um como remédio, outro parte de um conjunto de apetrechos para fazer fogo que incluía uma dezena de plantas e pirite para fazer faíscas. Era uma enciclopédia ambulante de conhecimento acumulado – conhecimento de como fazer utensílios e roupa, bem como dos materiais com que estas eram feitas. Levava consigo as invenções de dezenas, talvez milhares de pessoas. Se tivesse de inventar do nada todo aquele equipamento seria um génio. No entanto, mesmo que soubesse o que fazer e como fazê-lo, se tivesse passado os seus dias a recolher todos os materiais de que necessitava só para a comida e para a roupa (já para não falar do abrigo e das ferramentas), iria além dos seus limites, quanto mais se tivesse de fundir, curtir, coser, moldar e afiar tudo. Estava sem dúvida a consumir o trabalho de muitas outras pessoas e a dar o seu em troca. (…) Oetzi viveu há cerca de 5300 anos no vale alpino, dois mil anos depois de a agricultura ter chegado ao Sul da Europa." [RIDLEY, 2013: 157-158]


*NOTA: Concepções alternativas são “formas de ver/pensar”, intuitivas ou promovidas através de aprendizagens, que não coincidem com a realidade factual e concreta. Uma concepção alternativa é diferente de um simples erro. Os erros podem ser identificados e corrigidos perante a evidencia/demonstração da respectiva concepção correcta. No entanto, as concepções alternativas são, muitas vezes, persistentes e difíceis de corrigir/eliminar, podendo constituir importantes obstáculos à correcta interpretação do mundo em geral e/ou de fenómenos em particular.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
RIDLEY, Matt. O Otimista Racional – Como Evolui o Bem-estar. Lisboa: Bertrand Editora, 2013, pp. 528. ISBN 978-972-25-2624-1

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