D'O ESTRANHO MUNDO EM QUE VIVEMOS
Quando em Março publiquei
o post Cuidem-se e cuidem, sobre a importância de fortalecer o
sistema imunitário no contexto da covid-19, referi que não era ocasião para
críticas ou prognósticos mas que teríamos oportunamente, num futuro mais ou
menos próximo (ou afastado), a possibilidade de reflectir (e consequentemente
de opinar) sobre a pandemia. Na altura remeti essa possibilidade para uma origem
divina – “se Deus quisesse” – mas hoje talvez seja mais sensato dizer “se a
censura o permitir”!!!
Passou a Primavera e
o Verão vai avançado: continuamos a “achar” que não é o momento de tecer
considerandos sobre os “fenómenos pandémicos” (na verdade, não nos apetece)… Apenas damos nota de dois “episódios
pontuais” que consideramos, neste âmbito, significativos e dignos de menção:
(1) as inusitadas e injustificadas “censuras”, que ocorreram no Facebook, do post
referido acima (posteriormente corrigidas!) e (2) a concretização da previsão,
também publicada no Facebook, da proibição daí a dias da prática de caminhadas no
Parque Florestal de Monsanto. Felizmente, ao contrário do que se passou na
França, foi possível efectuar caminhadas diárias, “à porta de casa”, desde que de
curta duração e extensão: as designadas "caminhadas higiénicas! Nesta matéria, recomendamos vivamente a leitura d’Este
Vírus Que Nos Enlouquece, publicado recentemente pela Guerra e Paz
(Julho de 2020), da autoria de Bernard-Henry Lévy, de que destacamos uma
pequena citação e dois trechos, do encerramento do livro, para abrir o apetite
ou aguçar a curiosidade, como queiram.
O passeio do animal de companhia e, a partir de 11 de Abril, a sua adopção foram integradas na lista de deslocações autorizadas enquanto continuavam interditos os passeios solitários ou a dois, em percursos pedestres ou em praias.
[LÉVY, 2020: 73]
O
mundo, no Gaffiot, esse dicionário de latim no qual os jovens outrora aprendiam
a pensar em francês, era mundus – e usava-se em dois sentidos.
O
verdadeiro mundo. Aquele onde os homens penam, choram, morrem e desejam. Aquele
que, no século XX, por duas vezes desmoronou, na verdade três com a longa ruína
do comunismo – mas que os seus habitantes estão todas as vezes, prontos para
reconstruir. Aquele onde nos sabemos herdeiros de um passado criminoso que
engoliu, como uma jibóia, e que ainda engolirá, todas as antigas filosofias,
mas onde nunca resolvemos, apesar disso, deixar de pensar e sobretudo de agir.
Aquele, em suma, de uma geração, a minha, que foi educada com a convicção de
que já não se trata de ver os comboios passar nem de repetir, como um disco
riscado, «isto nunca mais» – mas que é preciso fazer tudo, tudo, politicamente,
praticamente, activamente, quase manualmente, para conter um pouco esse «isto»…
(…)
Mas
mundus também quer dizer aquilo que é nítido e limpo. Sem nódoas e imaculado.
Asséptico. Higienizado. Em grego, quer dizer cosmos. Em francês, cosmética. E é
o nome de um outro mundo, indiferente ao seu lado maldito, esquecido de que o
imundo existe e de que faz parte do nosso ofício humano afronta-lo – é o nome
de um mundo demasiado belo, onde é suposto escondermos essa miséria, esse mal,
essa Medusa, cuja visão não suportaríamos… Nesse mundo, velhos como o mundo a
quem o coronavírus renova a fama, os homens que apanham um avião para reportar
o que se passa no golfo de Bengala são [considerados] assassinos
do planeta. Os internacionalistas que
partem para as regiões onde brilham, em vez dos nomes e dos lugares, os ceifeiros
da morte, que se metem onde não devem para depois serem chamados à atenção. E,
quando regressam, que encontram? Um mundo onde reinam os técnicos da
ventilação, os vigilantes gerais do estado de emergência, os delegados da
agonia. Um mundo onde, em vez do mundo que faz demasiado mal, temos o
álcool-gel, as varandas onde nos auto-elogiamos, cães para passear duas vezes
ao dia munidos de atestados covid e cidades expurgadas da multidão humana, como
uma sala de operações, das infecções mesocomiais. Um mundo de donos de cães,
quer dizer , de donos que são cães e se comportam como cães, uma humanidade que
só tem direito a ladrar quando lhe lembram que é feita de homens, a gemer
quando apanha um vírus e a latir quando o senhor Corona, nosso rei, lhe vier
dar uma lição como se dá a ração ou uma tareia. O mundo foi feito para se
encolher, diz o rei Corona. Foi feito para que nos deitássemos. E se o sono
tarda a vir, é preciso contar carneiros e dinheiros, se os tivermos, e,
portanto, também de vírus.
Não
é bela a vida?
Não
temos tudo aquilo de que precisamos (os bens de primeira necessidade, mas também,
no final de contas, o sexo, a imaginação, a morte) à distância de cliques e
Netflixes? Olha! Cá está essa «net», que é o outro sentido de mundus…
Esta
é a lição do vírus.
Esta
é a razão da minha fúria.
E
é ainda a razão pela qual era preciso resistir, custasse o que custasse, a esse
vento de loucura que sopra sobre o mundo.
[LÉVY, 2020: 99-102]
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
LÉVY,
Bernard-Henri. Este vírus que nos enlouquece. Lisboa: Guerra e
Paz, Editores, 2020, pp. 104. ISBN 978-989-702-563-1
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