Na net? © Earling Kagge (2016)
«DE TODOS, a Antártida é o lugar mais silencioso onde estive.
Caminhei completamente só até ao Polo Sul, e nessa imensa e monótona paisagem,
à parte os sons que eu próprio fazia, não se ouvia mais nenhum ruído humano.
Absolutamente só, naquela imensidão gelada, imerso no grande nada branco, podia ouvir e sentir o silêncio. (…)
Tudo parecia completamente liso e branco, quilómetro após
quilómetro, durante todo o caminho em direção ao horizonte, à medida que me
dirigia para o Sul através do continente mais frio do planeta. (…)
A certa altura, nesse isolamento total, comecei a dar-me conta de
que afinal nada era completamente liso. O gelo e a neve dispunham-se formando
pequenas e grandes figuras abstratas. A brancura uniforme transformava-se em
inumeráveis matizes de branco. Uma tonalidade azul emergia da neve, um
tudo-nada avermelhada, esverdeada e vagamente rosada. A paisagem parecia mudar
à medida que eu avançava, mas eu estava enganado. O que me rodeava mantinha-se
constante; quem mudava era eu. No vigésimo segundo dia, escrevi no meu diário: «Em
casa só aprecio “grandes garfadas”. Aqui aprendi a valorizar as alegrias mínimas.
Os tons subtis da neve. O vento que começa a amainar. Formações de nuvens.
Silêncio.»
Quando era criança, o facto de o caracol ser capaz de transportar a
sua casa, para onde quer que fosse, causava-me um enorme fascínio. Durante a
minha expedição à Antártida, esse fascínio pelo caracol aumentou. Coloquei num
trenó toda a comida e combustível necessários para toda a viagem e nunca abri a boca para falar. Não tinha
contacto via rádio, nem vi um único ser vivo durante 50 dias. Não fiz mais do
que esquiar em direção ao Sul, dia após dia. Mesmo quando me irritava por causa
de uma amarra partida ou porque quase escorregava para dentro de uma fenda, não praguejava. Quando nos irritamos, ficamos
na mó de baixo, e isso agrava ainda mais a irritação. Portanto, nunca digo palavrões durante as minhas
expedições.
Quando estou em casa, há sempre um carro que passa, um telefone que
toca, ou faz ping ou zumbe, alguém fala, sussurra ou grita. Há tantos ruídos
que mal os ouvimos todos. Aqui era diferente. A natureza falava comigo através
do silêncio. Quanto mais silencioso eu
ficava, mais ouvia.»
[KAGGE, 2017: 21-23]
Na net? © Earling Kagge (2016)
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
KEGGE, Erling. Silêncio na Era do Ruído. Lisboa:
Quetzal, 2017, pp. 160. ISBN 978-989-722-385-3