sexta-feira, 22 de setembro de 2017

O caminho do deserto


E quando lhe dá a escolher continuar a viver na felicidade, na ilusão, no conforto, na satisfação e no prazer de Matrix, ou perder tudo isso, mas descobrir a Verdade sobre o “outro mundo”, que ele sabe ser um deserto (a Terra era árida e desolada, governada por máquinas no ano 2192), Neo escolhe a pílula vermelha. Como diz Frost no seu poema: “Escolhi o caminho menos percorrido. E isso fez toda a diferença.

Escolheu como Descartes, conhecer a Verdade, “o Deserto do Real”.

Mas porque é o Real um deserto? Justamente pelas razões referidas acima: sair do ilusório mundo dos sentidos onde tudo é agradável e cómodo e, onde, apesar da dor, do sofrimento e da morte, se vive a ilusão dos sentidos e de que se pode construir algo de bom e belo é, de facto, um deserto.

A realidade do desapego a tudo isso, do desprendimento deste mundo interiormente solitário e da entrega a um outro, desconhecido, de que apenas se intui nele residir a Verdade, representa um verdadeiro deserto para quem está na Matrix, ou seja, para a actual humanidade perdida na ignorância e na descrença, crendo viver na Realidade.
O Nada, “o deserto interior”… Relembremos aqui o desapego e desprendimento em que culmina a iniciação do adepto Rosacruz ou de Descartes, as suas meditações e reflexões, os anos que passou longe do “ruído” do mundo, no “seu deserto”, ao qual tanto desejava regressar durante a sua trágica estadia na Suécia.

Na cena em que vai a caminho de casa do Oráculo, ao passar por um restaurante, Neo exclama subitamente: “meu Deus, eu costumava comer ali um spaghetti muito bom”. E pensa: “tenho essas lembranças da vida… nada disso aconteceu…

Este episódio induz a questionar como é que o Real se distingue do mundo virtual. Aqui entra por sua vez, a noção de espaço: no virtual ele não existe salvo nas mentes. Mas existe o ciberespaço. E será este real? A espacialização do real foi rejeitada por alguns filósofos, como Platão, para quem os algarismos e as Ideias, por serem eternas e imutáveis e sendo origem do nosso mundo material e do nosso conhecimento dele, são mais reais do que os objectos localizáveis no espaço. Também Kant considera, que o espaço não é uma coisa em si, mas depende de como se intui o mundo.
[AZEVEDO, 2015: 473-474]


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
AZEVEDO, Teresa Mira de. A vida misteriosa de René Descartes. Lisboa: Chiado Editora, 2015, pp. 556. ISBN 978-989-51-5952-9


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