Não posso deixar de considerar caricatas algumas
especificidades inerentes à evolução (ou involução?) da prática de
pedestrianismo nas últimas décadas. Aquilo a que se chama “pedestrianismo” mas
que se poderá designar, sem desprimor, por “caminhada”, “marcha”, “andar”,
“andarilhar”, “vagabundear”, "vadiar" ou… simplesmente chamar-se “nada” (aquele nada que
é tudo)! Tão só usufruir plenamente a experiência concreta de pôr um pé diante
do outro e ir mais além…
O sequestro (ou a tentativa de sequestro) sectorial
dessa actividade de ar livre – dessa prática ancestral sinónima de liberdade, "evasão" e inspiração – tem progredido paulatinamente de forma consentânea com a
crise do associativismo (informal ou institucional) de que tanto se fala mas, a
meu ver, extravasa em muito esse fenómeno. Desde logo pela simples razão de se
poder caminhar a solo (e como diziam
os "antigos": antes sozinho do que mal acompanhado), sem qualquer consideração
pelos “actuais” e insistentes alertas face a essa pretensa imprudência. E sem
que isso impeça, claro está, antes complemente e enriqueça, a possibilidade de,
numa espontânea manifestação de livre associativismo, poder partilhar a
experiência do andar com diversos companheiros e das formas mais variadas,
longe de tutelas, enquadramentos legais ou outros espartilhos. É precisamente a
multiplicidade de possibilidades e mormente as facetas de liberdade e de gratuitidade
associadas ao pedestrianismo que fazem com que certas tendências das últimas
décadas surjam como evidentes limitações a uma prática que se pretende aberta e
inovadora.
A conjectura a que aludimos remete para uma crise mais
vasta, uma crise de valores, uma crise civilizacional, que se tem traduzido,
por exemplo, numa crescente privatização/comercialização da actividade e em condicionalismos
à prática da mesma (designadamente na Rede Nacional de Áreas Protegidas), a par
do aumento do consumismo, do egoísmo, da alienação e da “domesticação” dos
praticantes!
A locomoção bípede é inerente ao Homo e ninguém deverá condicionar quanto mais proibir essa
actividade. A liberdade de vivenciar essa capacidade da forma que nos aprouver
surge desde logo pela designação que lhe queiramos dar ou pela ausência da
mesma. Podemos andar à “porta-de-casa” em ambiente urbano e/ou em longínquas e
inóspitas paragens naturais (wilderness),
em caminhos marcados tal como em trilhos não balizados, depressa ou devagar, sozinhos
ou acompanhados, ir em peregrinação, andar pela saúde ou sem qualquer motivo, etc.. Andar poucos minutos, horas, dias,
semanas ou meses, há lugar para os que andando vestidos o fazem descalços e para
aqueles que sendo nudistas andam calçados, para os minimalistas e/ou primais e
para aqueles que gostam de andar artilhados com materiais topo de gama ou com o
último gadget do mercado, etc., etc., etc..
Para mim, uma prática em
autonomia é certamente um objectivo a alcançar mas, tão ou mais importante, é igualmente
fundamental ser autêntico e original (ir às origens) conseguindo cultivar
permanentemente uma atitude de abertura a novas (ou velhas?) concepções, experimentações e
aprendizagens; é primordial ganhar asas para poder andar...
Um pouco mais de sol - eu era brasa
Um pouco mais de azul - e eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...
Mário de Sá Carneiro (1913): Quási