A atribuição de valores intrínsecos aos seres
vivos ou até aos inanimados foi algo perfeitamente natural entre os homens (e
mulheres) primitivos, tal como ainda hoje entre tribos consideradas “selvagens”
que vivem da caça e da recolecção (Lévi-Strauss, 1962). Segundo o biólogo
Edward Wilson (2007): “De acordo com o registo arqueológico, perdemo-nos da
natureza com o início da civilização, há aproximadamente 10 mil anos. Esse
salto quântico deslumbrou-nos com uma ilusão de liberdade em relação ao mundo
que nos tinha gerado. Alimentou a convicção de que o espírito humano pode ser
moldado em algo de novo para se adaptar a alterações no ambiente e na cultura
e, consequentemente, os calendários da história dessincronizaram-se.
(…) A civilização foi adquirida com a traição
da natureza. A revolução neolítica, que compreendeu a invenção da agricultura e
das povoações, alimentou-se da generosidade da natureza. (…) O depauperamento
da fauna e da flora da Terra foi um preço aceitável até aos séculos mais
recentes, quando a natureza parecia ser virtualmente infinita e inimiga dos
exploradores e dos pioneiros.
(…) Entretanto, a moderna revolução técnico-científica,
incluindo especialmente o grande salto em frente dado pela tecnologia da
informação baseada nos computadores, traiu a natureza pela segunda vez, ao
fomentar a convicção de que os casulos de vida material urbana e suburbana são
suficientes para a realização humana. Este erro é particularmente grave. A
natureza humana é mais ampla e mais profunda do que o artifício material de
qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens
encontram-se profundamente arreigadas no mundo natural, por canais de
desenvolvimento mental ainda maioritariamente desconhecidos.”
A evolução desta forma traçada por Wilson
reflecte claramente o afastamento do Homem face à Natureza e, simultaneamente,
a crescente importância das concepções antropocêntricas, tal como das
perpectivas utilitárias e dos valores extrínsecos associados. Neste contexto,
não será de admirar que os valores intrínsecos da Natureza, os direitos dos
animais e, mais ainda, das plantas ou das rochas sejam encarados com bastante controvérsia no
seio da sociedade moderna/pós-moderna.
Na actualidade, o valor instrumental é
evidente “porque se relaciona com a nossa vontade, interesses e desejos”
(VAZ & DELFINO, 2010), já o valor intrínseco (aquele que uma determinada
coisa tem devido à sua própria natureza) é mais difícil de compreender por
mentalidades vincadamente antropocêntricas.
A atribuição de valores intrínsecos a
elementos biológicos ou geológicos é com frequência objecto de controvérsia,
porque esse tipo de valores remetem para conceitos filosóficos, éticos e,
inclusivamente, políticos que não são partilhados pela generalidade das
populações ocidentais. Estes conceitos remetem inevitavelmente para diversas
questões: O porquê de deverem ser preservados os meios selvagens per se?
Ou o porquê das paisagens ou rochas deverem ser preservados pelo seu valor
intrínseco?
A evidente insustentabilidade do estilo de
vida moderno e, posteriormente, pós-moderno, baseado no consumismo e, depois,
no híper-consumismo (para empregar a expressão cunhada pelo filósofo Gilles
Lipovetsky, 2004) tornou evidente em determinadas correntes de pensamento a
necessidade de uma outra relação/posicionamento face à Natureza.
A aurora dessas novas formas de pensar é traduzida
de forma cabal em A Sand County Almanac. Esta obra, publicada pela
primeira vez em 1949, só viria a revelar o seu enorme alcance com a expansão,
a partir dos anos 60 do século XX, da consciência ecológica moderna nos Estados
Unidos e um pouco por todo o mundo. Este livro é hoje talvez o mais discutido
clássico do "ecologismo" e o pilar de uma muito recente ética da
Terra, ética ambiental ou ética ecológica.
Para José Carlos Costa Marques, o editor da
obra em português (Pensar como uma Montanha, 2008), é surpreendente que
neste livro, de mais de 200 páginas na edição original, o conteúdo mais conhecido,
citado e debatido se resuma quase ao último capítulo (The Land Ethic),
somente cerca da nona parte da totalidade da obra. E neste, sobretudo a sua
última secção (The Outlook). E nessas duas páginas e meia destaca-se sobretudo um parágrafo, o sexto dessa secção: oito linhas! E destas, sobretudo, as três últimas: A thing is right when it tends
to preserve the integrity, stability, and beauty of the biotic community. It is wrong
when it tends otherwise.
A leitura integral de Pensar como uma
Montanha (A Sand County Almanac) é imprescindível para entender o
pensamento de Aldo leopold, tendo em conta que a mesma possui uma estrutura que
funciona de forma gradativa, como se o leitor fosse levado pela mão numa lição
progressiva de "educação ambiental" - melhor seria dizer de (re)integração na Natureza -, até ao culminar, no final da obra, nos elevados
conceitos da designada "ética da Terra". E, nesse contexto, não será de admirar o que o
filósofo Viriato Soromenho-Marques afirma no prefácio da mesma: “O que nós
devemos a Aldo Leopold é uma radical mudança de olhar sobre as relações entre o
Homem e a Natureza.” Retomando a inspiração de outras duas grandes figuras
do pensamento norte-americano do século XIX, os transcendentalistas Ralph Waldo
Emerson e Henry David Thoreau, “Leopold oferece aos seus leitores uma visão
subtil e delicada da frágil teia dos equilíbrios naturais, criticando, de uma
forma pedagógica e sem arrogância moral ou científica, o modo desastrado e
destruidor de que se revestem a maioria das intervenções humanas sobre os
ecossistemas, em nome de um duvidoso conceito de “progresso”. Leopold soube ver
mais fundo que a esmagadora maioria dos filósofos do seu tempo: uma “Ética da
Terra” (Land Ethics)”.
Na ética da Terra de Leopold está incluso praticamente
tudo aquilo que hoje estamos a (re)aprender quando queremos transformar o
conceito de desenvolvimento sustentável em algo realmente efectivo: o respeito
pelos valores intrínsecos dos ecossistemas; a capacidade de apreciação do
sagrado e sublime que se manifesta na Natureza (Soromenho-Marques in
LEOPOLD, 2008).
Neste contexto, será igualmente importante
salientar que os textos do alemão Wilhelm Heinrich Riehl já prenunciavam a crítica
das justificações utilitárias, portanto antropocentristas, que estão associadas
a uma visão da ecologia numa perspectiva “ambientalista” (FERRY, 1993). Este
autor, dos anos 30 do século XX, reivindicava o direito das árvores e dos
rochedos: “Durante séculos repetiram-nos sem cessar que era um progresso
defender o direito das terras cultivadas. Mas hoje em dia o progresso está, na
realidade, em reivindicar os direitos da natureza selvagem ao lado da dos
campos. E não só dos terrenos arborizados, mas também das dunas de areia, dos
pântanos, das charnecas, dos recifes e dos glaciares!”
Para a generalidade dos homens e mulheres com
um estilo de vida ocidental será simplesmente insensato tratar os animais,
seres da natureza e não da liberdade, como pessoas jurídicas e, mais ainda, os
seres inanimados como as paisagens, os afloramentos ou os minerais. Consideram
óbvio que só os humanos sejam “dignos de um processo” jurídico. A Natureza tornou-se
letra morta! Em sentido próprio: ela não nos diz nada porque deixámos há muito
– pelo menos desde Descartes – de lhe atribuir uma alma e de a crer habitada
por forças ocultas (FERRY, 1993). A separação do Homem e da Natureza, pela qual
o humanismo moderno foi levado a atribuir apenas ao primeiro a qualidade de pessoa
moral e jurídica, ou sujeito de direitos e valores, não terá sido contudo senão
um longo parênteses, em vias de voltar a fechar-se. O exemplo disso serão as
novas correntes de pensamento que curiosamente se aproximam dos nossos ancestrais
caçadores e recolectores.
A título de exemplo, refira-se o artigo de
Christopher D. Stone publicado, em 1972, na conceituada Southern California Law
Review: Should trees have Standing?
Toward legal rights for natural objects. As teses de “ecologia radical” do professor
Stone a favor de uma Natureza titular de direitos tem um grande interesse no
contexto da evolução do pensamento a que temos vindo a fazer referência. O seu
primeiro argumento consiste em recordar o raciocínio, ritual nesta literatura dita
“ecologista”, segundo o qual o tempo dos direitos da Natureza teria chegado,
após o das crianças, das mulheres, dos negros, dos índios ou até mesmo dos
embriões. Em suma, trata-se de sugerir que o que parecia “impensável” numa
época, em tantos aspectos próxima da nossa, e que se tornou numa evidência hoje
em dia. Só é pena o professor Stone se ter esquecido dos elementos geológicos!
O debate sobre o direito das árvores ou dos rochedos, para além da sua aparente estranheza, trata-se de saber
se o Homem é o único sujeito de direito e detentor de valores, ou se, pelo
contrário, aquilo que hoje se chama a “biosfera”, a “geosfera” ou a “ecosfera”,
e que outrora se designava por “cosmos”, também é passível detentor de direitos
e valores intrínsecos. O homem não seria neste caso, sob qualquer ponto de
vista – ético, jurídico ou ontológico –, senão mais um elemento entre outros no
seio da Natureza (FERRY, 1993).
É esta visão do mundo – ecocêntrica – ainda de
certo modo inédita que Bill Devall, na sequência do filósofo norueguês Arne
Naess, se propõe designar por deep ecology (ecologia profunda). Segundo
uma terminologia já clássica nas universidades americanas, deve-se opor a
“ecologia profunda” (deeep ecology), “ecocêntrica” ou “biocêntrica”, à
“ecologia superficial” (shallow ecology), ou “ambientalista”, fundada no
velho antropocentrismo.
O reconhecimento ético dos seres inanimados
tende a tornar-se o critério do sucesso ou do insucesso de uma tal
desconstrução da modernidade, como sugere Roberick Nash (in FERRY, 1993),
outro teórico do movimento deep ecology:
“Os rochedos têm direitos? Se chegar o dia
em que esta questão não mais se apresente como ridícula para um grande número
de nós, estaremos então na via de uma mudança de sistema de valores que
tornará, porventura, possíveis medidas susceptíveis de pôr termo à crise
ecológica. Esperemos que ainda se esteja a tempo.”
(Pedro Cuiça, 2013)
Vrsaki Breg (Sérvia)
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