Verdade seja que, para elevar assim a leitura à
dignidade de «arte» é mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje
muito esquecida (por isso há-de passar muito tempo antes dos meus escritos
serem «legíveis») uma faculdade que exige qualidades bovinas, e não as de um
homem fim-de-século. Falo da faculdade de ruminar.
Nietzche (1887) in A Genealogia da Moral (Guimarães & Cª Editores, 1983, 4ª ed., p.
16)
Emersos naquilo que já foi apelidado, no século passado*, de “sociedade da informação”, e que outros definiram como sociedade hipermoderna ou hiperconsumista**, parece que nunca tanto gentio se sentiu detentor de tão prolífero “conhecimento”, tendo em conta a imensa quantidade, diversidade e facilidade de acesso a… “dados”. Aquilo que antigamente se poderia designar por “à mão de semear” e que agora é costumaz referir como conhecimento "à distância de um clique”, pronto a consumir num estilo tão fast como superficial, extemporâneo e, por vezes, descaradamente fake. É a democratização da “coltura”, ou a soltura neoliberal, geradora de um ilusionista “admirável mundo novo” ao jeito huxleyiano**. Não será, pois, de admirar que “toda a gente” (salvo seja) emita “doutos” pareceres ou (até) grosseiras “bocas”, sobre tudo e os ou as debite amiúde sobre a forma de “palavras ao vento”, ao redor de umas “mines” e tremoços, ou noutros (muitos) cenários igualmente propícios para tais proezas, mormente em virtuais ciber-ambientes.
Nestes dias
nos quais se constata o predomínio de grandes grupos económicos – em detrimento de
pequenas e micro-empresas típicas de um comércio local e, portanto, de
proximidade – confrontamo-nos com a tão lamentável quanto irreversível extinção
de tradições ímpares e de importantes valores... Os centros comerciais e os
hipermercados surgem, num cenário globalizante, como símbolos inequívocos dessa
tendência monopolizadora e monocultural, mas o fenómeno é muito mais vasto e
alastra-se a praticamente todos os sectores das sociedades pós-modernas. O
mercado livreiro não é excepção e a demonstrá-lo está o fecho de numerosas
editoras, livrarias e alfarrabistas. Maleita particularmente fatal nos
projectos especializados mas que também afecta (e cada vez mais) opções
generalistas. Neste contexto, será de enaltecer os
projectos de nichos como a literatura de montanha e é, sem dúvida, fundamental
apoiar/incentivar essas iniciativas que, salvo algumas raríssimas e honrosas
excepções, surgem sob roupagens “românticas” ao estilo “último dos moicanos”!
É também neste
contexto que surge como sumamente importante a reflexão sobre o que é “interesse
público” ou “serviço público”, a par de outros conceitos aparentemente démodés,
como “gratuitidade”, “dar tempo ao tempo” ou “ética”!... É igualmente neste
contexto que será não só importante valorizar as editoras, livrarias e
alfarrabistas, especialmente as que se dedicam a nichos como a literatura de montanha,
mas também as bibliotecas públicas, onde possamos usufruir do prazer de
desfolhar e aprender gratuitamente da leitura lenta e reflexiva de livros. É
por essas e por outras razões que tenho o grato e o imenso prazer de constatar a
presença dos livros de que sou autor em insignes livrarias e em diversas
bibliotecas públicas.
Terry Portugal © Biblioteca Pública da Madalena (Pico-Açores, 2016)
Joaquim Figueiredo © Sala Multimédia da Biblioteca Municipal de Ponta Delgada (S. Miguel-Açores, 2017)
Olivier Coucelos © Livraria Lello (Porto, 2017)
*Fritz Machlup
(1902-1983) é o autor da obra que popularizou o conceito de sociedade da
informação: The Production and
Distribution of Knowledge in the United States (1962).
**O conceito
surgiu nos anos 70 mas só viria a obter um notável destaque, em 2004, com a
publicação da obra Os tempos hipermodernos,
escrita pelo filósofo Gilles Lipovetsky, com a colaboração de Sébastien
Charles.
***Aldous
Huxley (1894-1963) foi um escritor inglês, autor de uma vasta e
interessantíssima obra literária, de que se destaca o livro Brave New World (1932), traduzido para português sob o título O Admirável Mundo Novo.
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