quarta-feira, 9 de março de 2016

Calma...


REACÇÕES AO RISCO*

No tocante à gestão do risco é extremamente interessante, e a ter muito em conta na prática de pedestrianismo, o conceito de “paranóia construtiva”, proposto por Jared Diamond1:

«A minha escolha desta expressão paradoxal, aparentemente desagradável, para uma qualidade que admiro, é intencional. Empregamos habitualmente a palavra “paranóia” com um sentido pejorativo, incluindo medos exagerados e infundados. Foi isso que me pareceu quando pela primeira vez observei a reação dos nova-guineenses quanto a dormir debaixo de uma árvore morta, e é verdade que, regra geral, uma determinada árvore morta não vai cair naquela noite em que decidimos acampar debaixo dela. No entanto, a longo prazo, esta aparentemente paranóia é construtiva: é essencial para a sobrevivência segundo as condições tradicionais. De entre tudo o que aprendi com os nova-guineenses, nada me marcou tão profundamente como essa atitude. Está difundida por toda a Nova Guiné e é descrita em muitas outras sociedades tradicionais do mundo. Se algo comporta um perigo reduzido de cada vez que é feito, mas é levado a cabo com frequência, torna-se necessário aprender a ser cuidadoso, se não queremos acabar mortos ou incapacitados ainda novos.
(…) Na única ocasião em que fiquei incapacitado, sem poder andar, nos Estados Unidos (depois de escorregar num passeio molhado em Boston e partir um pé), arrastei-me até à cabina telefónica mais próxima para telefonar ao médico do meu pai, que me foi buscar e me levou ao hospital. No entanto, quando me magoei no joelho no interior da ilha Bougainville da Papua-Nova Guiné e fiquei impossibilitado de andar, vi-me preso ali no interior, a mais de trinta quilómetros da costa, sem qualquer forma de obter ajuda externa. Os nova-guineenses que fracturam um osso não têm um cirurgião para os tratar e acabam por ficar com um osso fora do sítio que os deixa permanentemente incapacitados.»

A designada “paranóia construtiva” dá um particular enfase aos acontecimentos que envolvem riscos baixos, mas que por se repetirem inúmeras vezes apresentam uma probabilidade de se revelarem danosos ou mesmo fatais, caso sejam ignorados. Os incidentes e os acidentes ocorrem geralmente por algum motivo, «pelo que temos de permanecer alerta para as possíveis razões e ter cuidado»2. Por isso é que se deverá cultivar uma atenção e reflexão permanentes, reparando em pequenos acontecimentos ou sinais, e desenvolver uma atitude naturalmente cuidadosa, regrada e eco-lógica nas actividades pedestres que decorrem no seio da natureza, mormente aquelas que envolvem noites de campo. Neste contexto, a divisa dos escoteiros “sempre alerta” ou “sempre pronto” (be prepared) expressa na perfeição a atitude de atenção (plena) e de prontidão que tornarão as actividades de campo significativamente mais seguras e agradáveis3


Não deixam também de ser interessantes as analogias que se poderão fazer entre a paranóia construtiva e aquilo a que o psicólogo Kevin Dutton (2007) apelidou de “mentalidade SOS”: um conjunto de princípios nucleares da psicopatia que, adequadamente aplicados com a devida atenção e cuidado, poderão contribuir para atingir um óptimo desempenho e uma segurança acrescida. Dos sete princípios elencados por Dutton, destacamos aqueles que poderão ajudar a responder antecipadamente, em vez de reagir, aos desafios com que somos confrontados no âmbito do pedestrianismo: (1) atenção plena, (2) concentração e (3) acção. Um dos segredos para minimizar eventuais riscos no contexto e no método que implementarmos e, nesse contexto, as qualidades apontadas marcam a diferença. Algo na linha daquilo que experimentámos, há uns anos atrás, em actividades de pedestrianismo a solo sob a mnemónica CCR: calma, concentração e rapidez.



NOTAS
1. Cf. DIAMOND, Jarred – O Mundo até Ontem – O que podemos aprender com as sociedades tradicionais?; Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013: 334-335.
2. Cf. ibidem: 55.
3. Cf. BRYSON, Bill – Por aqui e por ali; Lisboa: Quetzal Editores, 2007: 232. Mais uma vez a atenção, neste caso no que concerne às condições climatéricas e às respectivas respostas corporais, desempenha um papel fundamental: «O problema era ser um homem sem imaginação. Era rápido e alerta nas coisas da vida, mas só nas coisas, e não nos significados. (…) Esse facto (…) Não o levava a meditar sobre a fragilidade do homem em geral, só capaz de viver dentro de certos limites estreitos de calor e frio; e nem tão-pouco a conjecturar sobre o plano da imortalidade e o lugar do homem no universo.» (in LONDON, 2004: 200)

*Adaptado de CUIÇA, Pedro: Passo a Passo – Manual de Caminhada e Trekking. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015: 230-231

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