Nem é tarde, nem é cedo… Na sequência de anterior intróito circunstancial, é hoje que
publicamos algumas “reflexões” sobre Conceito(s) de Natureza. Não passa de um
pequeno trabalho no qual afloramos, pela rama, alguns conceitos e problemáticas tão
naturais quanto, inesperadamente, artificiais!…
A Arte Viva (Lisboa) Ó Pedro Cuiça (Agosto de 2015)
Conceito(s) de Natureza
RESUMO
A
natureza foi alvo de profundas cogitações desde a antiguidade até aos nossos
dias, no entanto esse “objecto de estudo” variou significativamente. A
complexidade e a abrangência do conceito de natureza, tal como a sua
dificuldade e ambiguidade, justificarão as mudanças e oscilações marcantes ao
longo do tempo. Na verdade, não existe um único conceito mas sim vários
conceitos de natureza.
Palavras-chave: natureza, natural, artificial, sobrenatural
«O universal é o local sem paredes.»
Miguel Torga
«O meu pensamento só muito devagar
atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens lhe fizeram usar.»
Alberto Caeiro
O
conceito de natureza é nuclear ou axial no âmbito da filosofia e da ciência. A
filosofia da natureza e a ciência da natureza coincidiram ao longo de séculos e
a sua separação, no contexto europeu, só ocorreu no século XVII1 e
mesmo desde então no mundo de língua inglesa ambas as expressões continuaram
sinónimas (Henry Margenau in
HEINEMANN et al., 2004: 365). A
investigação da natureza (physis)
está no cerne do modelo de racionalidade inaugurado, a partir do século VI
a.C., pelos filósofos, astrónomos, matemáticos e médicos gregos (CARDOSO et al., 2015: 11).
As
mais representativas escolas gregas encararam a vida como modelo da ordem
natural devido à regularidade dos processos biológicos e à espontaneidade e
finalidade intrínseca dos actos vitais (Ibidem:
12). O naturalismo renascentista realçou esta tendência, no século XVI,
exaltando em especial a perfeição, a beleza e a proporcionalidade do corpo
humano enquanto expressão suprema do universo, do qual foi considerado
arquétipo e símbolo.
A
natureza gosta do comum (do repetitivo), evidenciado sob a forma de ordem e de
regularidade. No entanto, também se revela de modo incomum (inusitado ou insólito),
através de singularidades, deformidades, “fugas ao padronizado”. A natureza
expressa inequívoca espontaneidade e simultaneamente remete para a
transcendentalidade. A manifestação da natureza surge, pois, sob diversas
roupagens e parece que esta gosta de se velar (ocultar sob véus). A opção, que
se assume intencional, de falar da natureza como se esta fosse um ente deve-se
ao facto desta, por vezes, ser equiparada a Deus (ou fazer parte deste), à
imagem do Homem2 e daí a narrativa antropocêntrica adveniente.
Uma
diferenciação conceptual, que procede da filosofia grega, considera uma natura naturans (natureza geradora que
cria) e uma natura naturata (natureza
criada). Averróis (1126-1198), nos seus comentários sobre a Physica de Aristóteles (350 a.C.), volta
a recuperar estes conceitos, tal como, posteriormente, muitos outros
pensadores. Os escolásticos mantêm a distinção da filosofia grega entre naturans e naturata, para justificar a Criação: Deus é necessário e é natura naturans (Leandro Sequeiros in BORGES et al., 2014: 114). A natureza naturante não é senão Deus. Para
Baruch Espinosa (1632-1677) dizer Deus ou Natureza é a mesma coisa. A ideia de
uma natureza naturante é, aliás, bastante anterior ao pensamento espinosiano.
Diversos pensadores gregos conceberam uma natureza plena de Deus – e.g. Tales de Mileto (623/624-546/548
a.C.) – no sentido de haver uma dimensão divina na natureza. Face a essas
concepções, consideradas por alguns como panteístas ou paneteístas, não
poderemos ignorar posicionamentos diametralmente opostos. Por exemplo, o
filósofo Robert Boyle (1627-1691) defendia que a natureza não era mais do que
um ente da razão e o sacerdote e filósofo Teodoro de Almeida (1722-1804)
alegava que a noção de natureza não passava de uma invenção pagã.
Na
obra De humani corporis fabrica
(1543), de Andreas Vesálio, a natureza é concebida como produção do artista
supremo (sumus opifex), sendo a sua
obra mais admirável o corpo humano, frequentemente designado como “artifício” (artificium), quer dizer o produto de uma
arte (CARDOSO et al., 2015: 12). Mas
não esqueçamos que no final do século XV, cerca de meio século antes de Vesálio
publicar a sua obra-prima, Leonardo da Vinci (1452-1519), já tinha antecipado
muito do que, do ponto de vista científico, iria acontecer nos séculos
seguintes.
A
física moderna fundada, entre outros, por Kepler, Galileu e Newton, no século
XVII, teve por base uma «imagem medieval
da natureza, que via nesta acima de tudo, a criação de Deus» (HEISENBERG,
1981:7). A natureza era pensada como obra do Criador, sendo considerado absurdo
conceber o mundo material independentemente de Deus. No entanto, no decurso de
poucos decénios, a atitude ante a natureza mudou radicalmente.
«Nos tempos que se seguiram, os métodos da
mecânica newtoniana foram aplicados com sucesso a campos cada vez mais vastos
da natureza. Tentou-se, por meio de experiências, isolar determinadas partes do
processo natural, observá-las objectivamente e compreender a sua regularidade.» (HEISENBERG, 1981:8)
Em
nome desta recente abordagem científica foi instituído um novo “credo” com
preconceitos rígidos e formais!… Segundo Bookchin (1989: 10): «Imaginava-se, por exemplo, que a
natureza era muda, cega, indiferente e insensível, e que apenas era dado ao
homem percebê-la através de equações e de enunciados matemáticos». O dito do físico Galileu Galilei (1564-1642), contido na sua
obra O Ensaiador (1623), passou a ser
regra: «O Livro da Natureza está escrito
em caracteres matemáticos» (BORGES et
al., 2014: 56).
Natural versus Artificial?
Numa
determinada perspectiva filosófica, o universo é composto de natureza e de alma3.
Para Ralph Waldo Emerson (1803-1882), estritamente falando, tudo o que a
filosofia considera como o “não eu”, isto é, a natureza (incluindo o próprio
corpo humano) e a arte, deve ser classificado com a designação de “natureza”.
No entanto, a natureza, no sentido corrente do termo, «refere-se às essências não alteradas pelo homem: o espaço, o ar, o rio,
a folha» (EMERSON, 2009:74). Segundo esse transcendentalista de Concord, a
arte corresponde, numa perspectiva vulgar, à acção da vontade humana que se
expressa sob a forma de objectos como, por exemplo, uma casa, um canal, uma
estátua ou um quadro. Essa forma de senso comum peca pela sua simplicidade
insustentável e levanta uma série de questões pertinentes que obrigam a um
pensamento mais profundo e, portanto, filosófico. Nessa perspectiva como
poderemos classificar um ninho de uma ave, uma barragem construída por castores
ou um ramo trabalhado por um chimpanzé para funcionar como instrumento, entre
tantos outros fenómenos do género? Tal como os artifícios e artefactos humanos
(toda a acção ou objecto pelos quais se age sobre a natureza), estas expressões
não humanas também teriam de ser consideradas, nessa lógica, como artificiais.
E, daí, decorreria prontamente a questão sobre onde situar a fronteira entre o
natural e o artificial. Questão, essa, que, só por si, para alguns, já é
“artificial”… A arte nasce na ou da natureza e tem, sem dúvida, a capacidade de
transformar a própria natureza, numa manifesta complementaridade ou mesmo
interpenetração. Para alguns, natureza e arte, natural e artificial, serão uma
e a mesma “coisa”, que também poderá ser designada por “realidade material” (de
matéria). Nesse contexto, não surpreenderá, portanto, que o
filósofo italiano Julius Evola (1898-1974), considerasse que a natureza é
também «los diques, las turbinas y las
fundiciones, la red tentacular de grúas y los muelles de un gran puerto moderno
o un complejo de rascacielos funcionales» (Philippe Baillet in EVOLA, 2003: 25).
A
natureza enquanto Criação, em grande parte por influência do cristianismo4,
remete para o conceito de natureza como artefacto e a «vida como o mais belo dos artifícios» (CARDOSO et al., 2015: 11). Deus surge como artífice (e.g. relojoeiro) e a natureza como artefacto (e.g. relógio), no entanto essa forma de pensar evidencia manifestas
insuficiências. Não restam dúvidas no tocante ao facto do artífice criar o
artefacto mas surge de imediato a dúvida sobre quem criou o artífice. Algo,
aliás, à semelhança da narrativa pós-moderna (do agrado de inúmeros ateístas)
acerca da criação do universo a partir do big
bang. O que havia antes dessa grande explosão de matéria e energia ou, numa
outra formulação, quem criou o big bang?
Mysterium tremendum et fascinans…
É na
linha de pensamento que considera a natureza como criação de um Deus que surge
a concepção de arte como capacidade de aperfeiçoamento da natureza. Concepção
que curiosamente continua igualmente a ser defendida, nos dias de hoje, por
acérrimos seguidores de uma (“deusa”) ciência supostamente acima de quaisquer
crenças! Aquilo que para alguns é “naturalmente” resultado da vontade divina ou
das maravilhas da ciência, e que se poderá consubstanciar na imagética do
aperfeiçoamento de uma “natureza selva” em “jardim”, para outros surge como um
sério risco de desnaturação e/ou de destruição da natureza.
Natureza selvagem (Wilderness): o exemplo da alta montanha
Uma área de natureza selvagem, em contraste com as
áreas onde o homem e as obras dominam a paisagem, pode ser reconhecida como
aquela em que a terra e a sua comunidade de vida não foram manipuladas pelo
homem, onde o próprio homem é um visitante que não permanece (JAMIESON et al., 2005: 358). Essa definição, com
todas as limitações filosóficas aduzidas do que já foi referido atrás acerca do
natural e do artificial, aplica-se numa Europa intensamente ocupada e
intervencionada pelo homem, desde há milhares de anos, em escassas áreas
excepcionais de que se destacam as profundas cavidades subterrâneas e as altas
montanhas.
O facto de na segunda metade do séc. XVII começar a
generalizar-se o sentimento do esplendor e da beleza das paisagens montanhosas,
a par da concepção mecanicista da natureza, é bastante curioso. Durante a Idade
Média e, segundo o clérigo anglicano William Gilpin (1724-1804), até pelo menos 1791, a maior parte das pessoas não
gostava da natureza selvagem (wilderness) e até a achava hostil. As altas montanhas eram consideradas esteticamente repelentes, excrescências, verrugas
da terra, “desertos” e até mesmo
– com as suas cristas labiais e vales vaginais – ‘partes pudendas da natureza’ (!), habitats do sobrenatural e de um tão variado quanto imaginativo
bestiário a condizer… No entanto, esse paradigma foi substituído precisamente
pelo oposto, facto a que não estará alheio o pensamento inovador ou original
(de ir às origens) do filósofo/cientista/artista Leonardo da Vinci. Este de
forma notoriamente à frente do seu tempo terá subido, em 1511 ou 1516, o monte
Bô (2556 m), entre outras ascensões efectuadas pelo anseio de descobrir essas
paragens pouco conhecidas e que revelavam “saberes”, até então ignorados, a
quem os soubesse interpretar… Da Vinci ao abrir os olhos da humanidade, em
inúmeros campos do conhecimento, fez também com que esta descobrisse os
encantos da alta montanha e, portanto, da natureza selvagem.
«Atravesó
varios neveros sin miedo y sus ojos de artista comprobaron el potente azul del
cielo, comparándolo con el de las gencianas. Luego, en sus pinturas dejará de
vez en cuando que los Alpes figuraran como fondo (…) Se sabe que
aquel genio admiró y sintió en su más profundo ser la belleza clásica de las
montañas. Él era precisamente la encarnación del Renacimiento.»
(FAUS, 2003: 47-48)
A influência de Da Vinci fez-se
sentir de forma morosa mas, contudo, imparável. Facto é que no decurso de três séculos sedimentou-se uma nova
forma de conceber a natureza…
«Over
the course of three centuries, therefore, a tremendous revolution of perception
occurred in the West concerning mountains. (…) That is to say, when we look at a landscape, we do not see
what is there, but largely what we think is there. (…) What we call a
mountain is thus in fact a collaboration of the physical forms of the world
with the imagination of humans – a
mountain of the mind. And the way people behave towards mountain has
little or nothing to do with the actual objects of rock and ice themselves.»
(MACFARLANE, 2004:
18-19)
Um exemplo
bastante expressivo do modo ilusório como muitas vezes o Homem interpreta a
natureza traduz-se na aparente imobilidade das montanhas resultante não da
realidade subjacente à própria montanha mas sim da escala do tempo geológico
(medida em milhões de anos) face ao diminuto período de vida humana e à
deficiente observação por parte da generalidade dos “observadores”. De facto,
as montanhas movem-se mas nem sempre isso é perceptível. Para ver não basta
olhar…
As
fortes influências do cristianismo na generalidade da população – tal como a
perspectiva mecanicista, que irá prevalecer durante os séculos XVII e XVIII,
sobretudo nas classes cultas – serão paulatinamente substituídas pelo retomar do ancestral tópico
nuclear da relação entre o Homem e a Natureza. Questão que não deixará de se colocar até hoje de
forma cada vez mais pertinente, sobretudo a partir da década de 1970, face à
alarmante destruição da natureza, mormente no que concerne à perda de
biodiversidade e às alterações climáticas.
É nesse
contexto que surgem novas abordagens filosóficas de que destacamos a ecologia
profunda, surgida em 1973, na sequência da publicação de um artigo seminal da
pena do filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009): O movimento ecológico de longo alcance, superficial e profundo. A
ecologia profunda baseia-se no conhecimento e no
desenvolvimento do “eu” (self). Não um “eu” atomista
e, portanto, limitado mas sim um “eu”
limiar que faz parte de um todo e, daí, o mais alargado possível. Este
modo de pensar implica abandonar um antropocentrismo (ou egocentrismo) de
vistas curtas e adoptar uma perspectiva alargada ecocêntrica. Naess defendeu
uma forma de ecosofia – que baptizou de “ecosofia T” (do nome da sua cabana de
montanha: Tvergastein) – assente numa dimensão ontológica e cosmológica de carácter transpessoal, de comunhão com
o todo/outro (animado ou inanimado), com vista à Auto-realização. Esta forma de
pensar não se limita à teoria dando uma especial importância à prática, razão
pela qual não será de todo estranho que muitos ecologistas profundos sejam
simultaneamente montanhistas e/ou pedestrianistas: Arne Naess, Bill Devall, George Sessions,
Nils Faarlund, etc..
As concepções inerentes à ecologia profunda vêm na
sequência de pensadores revolucionários como John Muir (1838-1914)5
e Aldo Leopold (1887-1948)6.
Este último na obra Pensar como uma
Montanha (1949) esboça uma ética da terra e perspectivas
assumidamente ecocêntricas que irão influenciar profundamente diversos autores
até à actualidade, entre eles os filósofos português José Manuel Heleno (1957-)
e o estadunidense David Abram (1957-).
«Importa, então, compreender o percurso que vai
da interioridade defendida por Agostinho à ideia que «ser real quer dizer não
estar dentro de mim» (Caeiro). Da interioridade absoluta ou «realidade de
dentro» (de origem divina) transita-se assim para a ideia que «antes de sermos
interior somos exterior/Por isso somos exterior essencialmente» (Caeiro).
(…) O que se dá na experiência sensível – do poeta
ou do pintor –, é o entrelaçamento entre o visível e o vidente.» (HELENO, 2002: 18)
«(…), não são apenas essas entidades
reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”, não são apenas os
outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma cultura
oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as
torrenciais chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da
mão. A montanha também tem os seus
pensamentos.» (ABRAM, 2007: 13)
A natureza
selvagem surge, em autores como Heleno e Abram, numa perspectiva
fenomenológica, como “paisagem de múltiplas vozes” que cabe ao Homem
descortinar. A ecologia profunda e a ecosofia voltam a integrar o Homem no
Cosmos, o humano passa novamente a fazer parte da natureza, a ser natureza.
O Homem: avis rara?
O
lugar do humano na natureza esteve, no pensamento ocidental, invariavelmente no
centro de todas as problemáticas. A superfície de contacto entre o Homem e a Natureza,
a sua relação e interacção, foi desde sempre um dos problemas mais fascinantes
da filosofia, da ética e da cultura.
O
cristianismo e, talvez mais do que este, o catolicismo, com o seu poderoso e
enraizado preconceito anti-naturalista e anti-pagão, substituiu de modo quase
absoluto a riqueza e a complexidade da visão greco-romana por um sobrenatural
único e, por isso, empobrecido e sobretudo desgarrado da natureza. De certa
forma, este empobrecimento corresponde àquilo que os filósofos e os
investigadores do Renascimento, particularmente com Descartes e Galileu, vão
ajudar a consolidar de forma radical (BOOKCHIN, 1989: 9).
Até
ao século XVII, o pensamento médico-filosófico considerava a vida como o
resultado da actividade da alma, que tinha a função essencial de animar o
corpo. No Tratado do Homem (1662),
Descartes rompe com esta tradição, inaugurando uma nova forma de conceber o ser
vivo e em especial o Homem como uma máquina apta a executar por si mesma,
mecânica e automaticamente, o conjunto das operações vitais, nomeadamente
mover-se, respirar, alimentar-se e reproduzir-se (CARDOSO et al., 2015: 19). É a partir de meados do século XVII que começa a
ser defendido que o corpo é que possui automatismo e que a alma é espontânea. A
alma até então fez parte da natureza – sendo que em algum platonismo e nas
“religiões do Livro” (desde o judaísmo) tal não aconteceu –, mas é nesse século
que a separação da alma e da natureza surge como um divórcio tão inequívoco
quanto generalizado7. Numa tentativa arrebatadora de mecanização da
natureza, os pensadores setecentistas retiraram a alma da natureza e apartaram
de forma drástica o Homem do natural8. O corpo e a alma passam a ter
“naturezas” distintas, diferenciando-se a natureza (corpo) da “natureza do
Homem” (alma)! Será igualmente de destacar, neste contexto, a mudança
conceptual da “natureza do corpo” para uma máquina terrestre (terrestrem) – feita de terra – em
detrimento de concepções anteriores em torno de humores líquidos (água)9.
O
Homem (de corpo e alma) surge indubitavelmente como um ser anfíbio: por um lado
é natural (faz parte da natureza), por outro será sobre-, supra- ou i-natural.
Tendo em conta esta perspectiva filosófica, o Homem no contexto da evolução das
espécies surge como avis rara sem
paralelo. Posicionamento bastante questionado no âmbito da biologia actual, que
não encontra diferenças substanciais entre os homens e os animais. Aliás, já
Fernando Pessoa, nas suas Reflexões Sobre
o Homem (1926-1928), salientava que o ser humano era um animal exactamente
como os outros: «A única diferença é que os outros são
animais irracionais simples, o homem um animal irracional complexo.» As
diferenças serão de ordem meramente quantitativa e não qualitativa…
As
competências cognitivas, tanto do Homem como dos restantes animais, são
naturais, são meras disposições naturais. As dúvidas surgem no tocante à
cultura enquanto pretenso atributo exclusivo do Homem10. E, neste
contexto, mais uma vez vem à colação a diferenciação do natural e do
artificial: o Homem, para além de uma dimensão natural, comportará uma dimensão
artificial (cultural). No entanto, esse atributo, para muitos autores, também
deixou de ser um monopólio humano tendo-se estendido ao não humano. No domínio
das eventuais diferenças, é a linguagem verbal (e talvez mais ainda a escrita)
que se destaca enquanto algo muitíssimo enigmático.
Todas
as tentativas de definição da linguagem saem goradas, desde logo porque o único
meio que podemos usar para definir a linguagem é a própria linguagem. A
verbalização surge como uma espécie de corpo para o pensamento. A língua pensa
na medida em que há determinados jogos de linguagem que nós sabemos fazer e
outros não. Cada língua surge como uma espécie de canto único… Será a linguagem
natural ou não-natural?
«Quando enalteço o
realismo não estou só a pensar no mundo dado aos sentidos, naquilo a que
chamamos mundo objectivo. Há uma dupla face da realidade: a natural e a
sobrenatural. Entre as duas, o mistério do verbo mediador. A mediação entre o
mundo sensível e o mundo inteligível, entre o natural e o divino, é que é
propriamente a metáfora.» (TELMO, 2004: 87)
Segundo
o filósofo José Manuel Heleno, o sagrado nasce da experiência sensível das
coisas e é não só possível apreender as coisas sem a ajuda dos nomes como a
utilização da linguagem implica «perdemos a realidade em vez de a ganhar – daí esse desejo de
silêncio anterior à própria palavra» (HELENO, 2002: 67). O enigma da
poesia, por exemplo, reside em esta ser mais do que mera “questão” de
linguagem, justamente pelo facto de haver um “milagre” da própria linguagem ou
dos símbolos na sua capacidade em se transcenderem e em dizerem o novo a partir
do velho (HELENO, 2002: 73). Neste contexto, ser original será regressar às
origens, voltar naturalmente a ser natureza e a superar a própria natureza.
Pedro Cuiça
Lisboa, 20 de Abril de 2015
Curso Complementar de Formação em Filosofia – Filosofia da
Natureza (Prof. Dr. Adelino Cardoso)
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (FCSH-UN)
Notas
1. A distinção entre filosofia da
natureza e ciência da natureza (na verdadeira acepção daquilo que se considera
como ciência moderna) verifica-se, a partir do século XVII, com a invenção do
método experimental.
2. A palavra “Homem” é utilizada para
designar a espécie humana, incluindo portanto homens e mulheres, sem quaisquer
intenções de descriminação de género.
3. A palavra “alma” foi inicialmente
empregue como sinónimo de “autómato”: a capacidade que a alma possui de
executar per si um conjunto de
operações (respiração, alimentação, reprodução, etc.), de trabalhar de forma regular como um “autómato vivo”. Com o
mecanicismo, a partir do século XVII, passou a estar separada da natureza e é
nesse contexto que é referida por Emerson.
4. Situação partilhada, aliás, por
outras “religiões do livro”: judaísmo, Islão e Fé Baha’i.
5. «Society speaks and all men
listen, mountain speak and wise men listen.» (MUIR)
6. «Suspeito agora que, exactamente como uma
manada de veados vive no temor mortal dos lobos, assim vive uma montanha no
temor mortal dos veados. E talvez com mais razão, pois que enquanto um veado
abatido pelos lobos pode ser substituído em dois ou três anos, uma cordilheira
desarborizada por um excesso de veados não consegue reconstituir-se em tantas
outras décadas.» (LEOPOLD, 2008: 131)
7. Estamos
cientes da existência de diferenças conceptuais entre “alma”, “mente” e
“espírito” – diferenças que por vezes não são tidas em conta (designadamente em
determinadas traduções) dando origem a mal-entendidos e confusões – mas não
iremos desenvolver essa temática. Nesse contexto, vem também à colação
distinções, a ter em conta, entre “instinto”, “emoção” e “razão”.
8. Não
deixa de ser interessante o facto de o filósofo e médico Francisco Sanches
(1550-1622), apesar de manifestar um posicionamento assumidamente racionalista,
afirmar simultaneamente que não se pode separar o Homem da Natureza. É de sua
autoria a fórmula «Solam sequar rationem
Naturem» (Vou seguir a mera natureza com a razão) que «condensa todo o programa da racionalidade moderna» (CARDOSO et al., 2015: 31).
9. Sendo
certo que o latino homo (homem) se
relaciona com humus (solo, terra), de
onde deriva também “humildade”, o Homem ao ignorar o facto de ser inseparável
da terra, da natureza e dos seres vivos – pervertendo o sentido original de
cultura (cultura de integração harmoniosa no mundo e não de desintegração
violenta) –, o Homem, dizíamos, passa a re-colher
(colere), não os frutos benéficos e
salutares do cultivo amoroso da terra e do espírito, mas os efeitos destrutivos
da sua própria violência (BORGES, 2014: 107). Será também oportuno salientar
que a vida surgiu no mar-oceano (em meio aquático) e que o corpo humano, sendo
feito em parte de terra, é composto por cerca de 70 a 75% de água.
10. «A origem da palavra cultura
encontra-se na raiz indo-europeia kwel, que reencontramos no sânscrito chakra,
o qual designa uma roda ou disco, seja a roda da lei universal (dharma), a
ronda das existências condicionadas (samsāra) ou a dos centros de energia
subtil no corpo humano. A cultura está assim ligada à imagem dinâmica da roda,
que no plano material foi uma descoberta maior da humanidade e no plano simbólico
figura a lei que rege todas as coisas, regulando a transformação dos seres e da
energia vital que os anima. A mesma raiz origina o grego kuklos, que designa
toda a forma redonda e de onde procedem o inglês wheel (roda) e o português
ciclo. Em latim, é assim a raiz originária do verbo colere, de onde procede
directamente o latino cultura, no sentido literal de “mover-se habilmente” no
cultivo da terra e no sentido de cultivar o espírito (“cultura animi”, em
Cícero), cortejar alguém ou cultuar uma divindade. Daí a proximidade entre
cultura, agricultura e culto.» (BORGES,
2004: 105-106)
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