sexta-feira, 8 de março de 2019

Orientação


Oriente, outra vez orient'a(c)ção?

«Ó céu por cima de mim, ó pureza, ó profundeza! Ao contemplar-te estremeço de desejos divinos.
Elevar-me à tua altura – eis para mim a profundidade! Ocultar-me no coração da tua pureza – eis a minha inocência.
(…)
E nas minhas peregrinações solitárias, de que tinha a minha alma fome durante as noites e pelos caminhos de acaso? E quando eu escalava montes, a quem procurei sempre nas montanhas, senão a ti?
E todas essas peregrinações, e todas essas ascensões de montanha, que eram senão um expediente e uma maneira de iludir a minha impotência? O que eu queria era voar, voar em ti
Friedrich NIETZSCHE in Antes da Aurora (1985: 181-182)

Nicolas Roerich © Path to Shambhala (1933)

Podia-se ter passado na Ilha imaginada por Camões o que se diz nesta citação de Henry Corbin:

«Quando Zoroastro abandonou a vida, o seu Xvarnach, essa flama emanada da luz infinita de Deus, foi guardado nas águas do lago Kansaoya, de onde emerge a montanha das auroras, Mons Victorialis, uma multidão de Fravartis é quem o guarda. No fim do nosso ciclo ou Aiôn, uma jovem entrará nas águas do lago místico. A luz gloriosa de Zoroastro penetrará no seu corpo e ela “conceberá aquele que virá triunfar sobre todos os malefícios dos demónios e dos homens.»

Com efeito, a estrofe 42 do canto nono d’Os Lusíadas alude ao mesmo mistério pelas palavras da deusa auroral, Vénus, rogando ao seu filho Amor, “aquele em quem tem a sua potestade”:

Quero que haja no reino neptudiano,
Onde eu nasci, progénie forte e bela,
E tome exemplo o mundo vil, malino
Quem contra tua potência se rebela,
Para que entendam que muro adamantino
Nem triste hipocrisia vale contra ela.
Mal haverá na terra quem se guarde
Se teu fogo imortal nas águas arde.

A união pelo amor do herói e da deusa no palácio de cristal do alto da montanha das auroras, dando origem a uma progénie forte e bela, só foi possível pela depuração, no Gama, do elemento violento, da hubris, com que os filhos da terra, os gigantes, fazem o assalto ao céu. Todos temos hoje a crua vivência do que é o titanismo. O Adamastor é o próprio Vasco da Gama em aparição aos seus próprios olhos. É, igualmente, o mesmo Camões na sua “natureza terrível”, que é a que lhe atribuem por estas palavras os seus contemporâneos. Assim se explica que seja a mesma a forma feminina desejada pelos dois, a cristalina Tethis. Onde o filho tenebroso da terra soçobra, o filho de Luso, agora senhor de Tirso, vê realizado o seu alto desejo. Pela dobragem do cabo, quando a rota inflecte na direcção dos países da aurora, a natureza terrível é sublimada pelo amor.
[TELMO, 2016: 67-68]

Pedro Cuiça © no sítio (2019)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE; Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores, 1985, pp. 376.
TELMO, António. Viagem a Granada. Sintra: Zéfiro, 2016, pp. 476. ISBN 978.989-677-143-0


Pedro Cuiça © Quinta da Regaleira (Sintra, 2016)


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