Dexter Kozen
««Houve uma frase que, de súbito, me
incendiou a mente», escreveu [Terence Hanbury White]. Essa frase era a
seguinte: «Regressou ao estado selvagem.» Nesse momento, fui assaltado
pelo anseio de que o mesmo se passasse comigo. A palavra «selvagem» encerrava
uma espécie de poder mágico que se aliou com duas outras palavras – «feroz» e
«livre». Por trás da ressonância grandiosa de «ferox» alinhavam-se
«sobrenatural» e «mágico», «etéreo» (…). Regressar ao estado selvagem!»
«(…) a morte era visceral e omnipresente, delimitada por formalidades cerimoniais. Quando, havia tantos anos, observava esses homens com açores a meterem faisões mortos no bornal, via uma desenvoltura que sugeria séculos de privilégios sociais e confiança desportiva.
E o vocabulário que aprendera nos livros distanciava-me da
morte. As aves de rapina treinadas não apanhavam animais. Apanhavam presas.
Apanhavam caça. Que termo extraordinário. Caça.»
Helen MACDONALD (2014: 185)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
O contraste entre a leitura que me acompanha, na viagem que
estou a empreender, – A de Açor – e a região onde me encontro por estes
dias é não só notório como gritante. Apesar de ter a plena consciência dessas
percepções não serem, de todo, audíveis e das visualizações surgirem sob um
cunho eminentemente pessoal e introspectivo, ademais de um certo ânimo
sorumbático que não estará alheio a este dia de antepassados (defuntos!) ou
vésperas do mesmo, estas – as percepções, reitere-se – não deixam de ser
significativas. De resto, as pessoas com que me cruzo estão (ou assim parecem
estar) manifestamente “noutra onda”.
Na verdade, poder-se-á afirmar, que essas percepções focam-se
essencialmente na camada superficial, e mais evidente, do “real” mas não
ignoram uma realidade muitíssimo mais antiga, ancestral, quase diria perene.
Por debaixo do verniz pretensamente sofisticado do urbanismo kitsch e de
outras banalidades turísticas encontram-se invariavelmente os alicerces
profundos do locus: a terra, na sua significação alargada e holística,
mas, também, na sua concepção concreta, terra-a-terra: a poeira de onde viemos
e para onde vamos. Sob a actual gula dos anfitriões e dos comensais encobre-se
a voragem dos seus antepassados pré-históricos que, à semelhança das aves de
rapina, se empanturravam naturalmente; a diferença é que os humanos agora o
fazem diariamente e antes o faziam para passar dias sem comida. Os exemplos da
convivência simultânea de mundos diversos são inúmeros, tal como da sua
interligação e/ou sucessão…
No percurso matinal que me levou até à Pila não vislumbrei
aves de presa mas fui acolhido, pouco depois de começar, por dois corvos. Aqui,
hoje, na caminhada até esse vilarejo, as rapinas seriam outras, pressentidas
atrás da linha limítrofe da zona de tampão das Nações Unidas, que separa a
República do Chipre da Turquia. Pila é dos mais antigos povoados do Chipre
(remonta à Idade do Bronze) e o único onde coexistem os habitantes originais: gregos
e turcos cipriotas. Conta com três igrejas e uma mesquita, sendo igualmente de
destacar a existência de uma torre medieval. O curioso nome “Pila”, de origem
grega (πύλη), significa “entrada”: provavelmente por constituir a única
passagem para a planície de Mesaoria.
A breve caminhada em solitário, de cerca de três horas, acabou mais ou menos como se
iniciou, num contexto surreal (sub-real), naquilo que é conhecido
internacionalmente como a zona turística de Pila: uma espécie de Algarve
cipriota fortemente descaracterizado. Aves de rapina “nem vê-las”, tal como
floresta ou até coberto vegetal digno desse nome. Depois de milhares de anos de
ocupação humana o que seria de esperar?! Mas surgem poderosas litologias e um
mar que dispensa palavras, uma intensa e tocante luminosidade, o ar e indizíveis
energias…
A Natureza Selvagem continua imponente e peremptória mesmo
que aparentemente velada sob uma mistura de cenários de parques de diversões,
zonas comerciais, habitacionais e industriais, ou esquecida em detrimento de
realidades virtuais e tecnologias que já ultrapassaram a ficção científica! A
Natureza Selvagem é a essência do tecido cósmico ou, por outras palavras, da
matriz (matrix), daquilo que alguns também chamam “este mundo”. E é precisamente
neste limiar da Roda do Ano, chamado “Samhaim” (“Halloween” ou outras
denominações), que – segundo as velhas tradições – supostamente se proporciona
a ligação entre os mundos, dos vivos e dos mortos, do Natural e do Sobrenatural.
A morte é tão ou mais naturalmente selvagem quanto a vida
pode ser. Brutal, mesmo. É nestas poucas noites-portal que os sentidos se abrem
e apuram a esse mistério tremendo. Descobrir-nos imóveis na escuridão, completamente
absortos, à escuta. E, porém, não haver nenhum som, apenas um silêncio de morte…
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
Pedro Cuiça © Pila (Chipre, 31 de Outubro de 2019)
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MACDONALD, Helen. A de Açor. Alfragide: Lua de Papel,
2015, pp. 344. ISBN 978-989-23-3394-6