«Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada
um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 26)
«Considerando-me paradoxal, dirigem-me o
melhor elogio que eu poderia ter.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 76)
«O mundo tem tantas possibilidades que até o
impossível é possível.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 44)
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Faz hoje 112 anos que nasceu Agostinho da
Silva. Esse Estranhíssimo Colosso1
que, na sua multifacetada complexidade, foi, antes de mais, um Homem simples e
humilde, profundamente entusiasmado, culto e convicto… Um poeta à solta, exímio
conhecedor da Idade Antiga, apaixonado pela Idade Média e arauto da Idade
Futura do Espírito Santo.
Um pensador que não desdenharia o epiteto de “libertário”,
porque libertador e cultor do exercício do «pensamento
libérrimo» (BRANCO, 2006: 69), mas que não seria certamente circunscrito
pelo mesmo. Difícil, se não impossível de “rotular”1, foi
indubitavelmente um paladino da Liberdade, mormente no sentido de «todo o homem (…) ser aquilo que ele tem de
ser: um criador sem nenhuma espécie de inibição» (Agostinho da Silva in MENDANHA, 1998: 56). E é, como ponto
de partida, com base nessa sua faceta, que, na sequência dos últimos três posts – Força, Sabedoria e Beleza –, abordamos hoje, em sua
memória, a Liberdade no caminhar/caminho.
Lembremos que Agostinho, tendo sido um reiterado
defensor da vadiagem e da errância – daqueles considerados «errantes,
no sentido de que poderiam andar por aqui e por acolá» (in Conversas Vadias) –, abordou
precisamente a Liberdade em Ritmos de Marcha (SILVA, 1990: 113-117).
O pensamento de Agostinho da Silva apesar de se
(re)velar sob a forma de uma aparente simplicidade categórica e incisiva,
oculta uma difícil e contraditória, senão paradoxal, complexidade. Tal como a vida é difícil2, o seu
pensamento não é fácil. Facto constatável, desde logo, pela sua ascética
afirmação da Liberdade «pela conquista e
domínio de si mesmo, através do caminho
único que têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais rigorosa e absoluta, da oração contínua e
do amor dos homens em Deus e por Deus»
(SILVA, 1990: 19). Um caminho único, porque assente na renúncia comum – saber
«ser ascético no meio da abundância»
e preferir «ao poder a santidade» (ibidem: 55) –, e simultaneamente múltiplo,
porque palmilhado por cada um de forma diferente.
Uma forma difícil e pouco usual de entender a
Liberdade, nos dias de hoje, tendo em conta que Agostinho não cria que «se possa definir o homem como um animal cuja
característica ou cujo último fim seja o de viver feliz», embora considerasse
que «nele seja essencial o viver alegre»
(ibidem, 51).
«Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem
dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as
duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a
inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e
cuja grandeza verdadeira só se pode sentir no desastre; é quando a catástrofe
chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino, e foi pena que não fosse
esta a lição essencial que tivéssemos tirado da tragédia grega; como pena foi
que só tivéssemos olhado o fatalismo dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força
do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral do
desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não
creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o
estivesse antes e depois da prisão; mas era
realmente um espírito de liberdade e um portador da liberdade o que, agrilhoado
à montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no
desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (…) No fundo é o seguinte: é
necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma
energia que se revelou pela física do mundo da extensão, se revele pelo
espírito do mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda
rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de
infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem
como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por
costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela
piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a
desgraça e a sua superação.»
[SILVA, 1990: 51-52]
Agostinho defende a liberdade da sua própria disciplina, numa «espécie de vida militar» e simultaneamente monástica, a que não
estranha os votos de pobreza – «do
abandono do ter (…) libertando-se da posse», – de celibato – «livrando de que outros o possuam» e «livre também de tratar o outro como se fosse»
sua posse – e de obediência – «que livra
a pessoa de ser possuída por ela própria e de ter a ideia de que só serve para
isto ou para aquilo» (in
Conversas Vadias).
E, no entanto, esse pensamento que parece
marcado pela fatalidade (a ideia de fatum),
de renúncia e sofrimento, surge como rampa de lançamento – atitude – para os
altos voos do Espírito Santo: «a pessoa
de Deus na qual está o domínio do inesperado; daquilo que parece ser a
Liberdade pura e não o destino» (ibidem).
Atitude é altitude! E é «nesse abrir-se ao Espírito Santo, ao talvez
absolutamente imprevisível, que cada homem encontra o caminho para se
cumprir a si mesmo – a única exigência que se lhe faz» (BRANCO,
2006: 93). Também poderemos ver essa atitude como opção de andar à solta ou andar ao
Deus dará, como se queira ou possa, sendo essa afinal (ou a-princípio) uma
forma de acreditar, como o faziam (e fazem) os povos primais3, na
Providência Divina, pondo de lado a previdência humana: «porque não reparamos talvez ainda suficientemente na pressa com que
todos nós, homens supostamente religiosos, tratamos de entesourar o que tememos
que amanhã pode esquecer à Providência de Deus, da qual, no entanto,
continuamos a falar abundantemente: só, porém, a falar» (SILVA, 1990: 69).
Nós, os ditos “civilizados”, «estamos tão
afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos
centrais de nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (ibidem: 69). Uma caminhada liberta ou
rumo à libertação passará pelo regresso às nossas origens: «temos de voltar aos povos naturais, como uma
etapa necessária para o caminho do sobrenatural, e sem dúvida voltaremos, ou
por nossa livre vontade ou, como tantas vezes sucede àqueles a quem Deus mais
ama, pela viva e contundente força de golpes exteriores» (ibidem: 70).
«Tudo o que faço no mundo
sem o fazer é feito
sobre o nada em que me deito.»
Agostinho da Silva (BORGES, 2006: 54)
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NOTAS
1. Título da biografia de Agostinho da Silva, escrita
por António Cândido Franco (Quetzal, 2015), em que, na contracapa, esse Colosso é caracterizado nos seguintes
moldes: «prosador de altíssimos dons, narrador inventivo, cronista subtil,
biógrafo monumental, pedagogo de largo esforço, monitor de fina manha,
professor de sucesso, pensador destemido, poeta bissexto, gramático de muita
língua, estóico severo, homem de desleixada túnica, entomologista, tradutor, criador
do Centro de Estudos Afro-Orientais, escândalo bíblico, trickster, ogã de terreiro baiano, patriarca de larga tribo, povoador,
amante, perrexil, poliglota, sonhador, farsante, polígamo, explicador,
joaquimita, gato, galo, sábio, escuteiro, pop-star,
colosso, bandeirante, franciscano anormal, homem do tá-tá-tá, aprendiz de valsa,
cidadão do mundo, aldeão antigo, monstro, vadio truculento, marau divino,
criança eterna, biógrafo de Miguel Ângelo, homem de cinco cabeças e dez
instrumentos (…), o optimista, o entusiasta, sem a mais pequena mancha de
desânimo no futuro.»
2. A VIDA É DIFÍCIL: é a fase com que começa o
livro, de M. Scott Peck, O Caminho Menos Percorrido (Sinais
de Fogo, 1999).
3. Para não utilizar a palavra “primitivos”
pela carga pejorativa que, em geral, se lhe associa!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANCO, João Maria de Freitas. Agostinho
da Silva – Um Perfil Filosófico. Sintra: Zéfiro, 2006, pp. 118. ISBN
972-8958-19-6
FRANCO, António Cândido Franco. O
Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva. Lisboa:
Quetzal, 2015, pp. 736. ISBN 978-989-722-186-6
MEDANHA, Victor. Conversas com Agostinho da Silva.
Lisboa: Pergaminho, 1998, 9ª ed., pp. 128. ISBN 972-711-057-6
SILVA, Agostinho da. Educação de Portugal.
Lisboa: Ulmeiro, 1989, pp. 80. ISBN 972-706-213-X
SILVA, Agostinho da. As Aproximações. Lisboa:
Relógio d’Água, 1990, pp. 132.