sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O Silêncio - mais do que uma virtude

[revista Fraternitas nº 14, Jul./Set. 2022, pp. 20-23]


Mestre Lima de Freitas - O Caminho da Serpente (1995)


«O que lhe dizia, caro Amigo, é que me parece que ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio; a perfeita vibração diante de uma flor ou de um pôr-do-sol ou de uma libélula sobre as águas de um ribeiro ou, o que mais vale, diante de uma mulher, traz consigo uma inibição de todas as funções de relação; não se diz nada à rosa, não se diz nada à mulher e, com muito mais razão, não se diz nada aos amigos, não se lhes comunica, com esse entusiasmo, com que você faz, que se nadou no azul dos céus ou totalmente nos fundimos no grande corpo de Deméter. Os mais fracos correm diante das suas emoções uma porta ondulada de ironia. Os mais fortes, porém, e eu desejo que você seja dos mais fortes, encerram-se num palácio de silêncio

Agostinho da SILVA in Sete Cartas a um Jovem Filósofo


Pensava que o silêncio, uma pedra basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo, era uma virtude. O caminho incontornável para aquilo que, sendo inefável, indizível e quiçá inominável, não podia ser expresso por palavras. Assim pensei, até há poucos anos, quando um companheiro questionou essa minha perspectiva e me levou, portanto, a aprofundar o pensamento sobre essa matéria. De facto, o silêncio não será tão somente uma virtude, pelo menos um determinado tipo de silêncio, o Silêncio. Tal como o Caminho da Serpente, de Fernando Pessoa, vai para além de Deus, também o Silêncio, quando ultrapassa o bem e o mal, vai para lá da(s) virtude(s). Passo a explicar.

O desejo de qualquer sujeito ético é “tornar-se bom”, ou, pelo menos, aperfeiçoar-se. Deste modo, uma das vantagens reivindicadas pela ética das virtudes centra-se no facto de ser formulada, logo à partida, na perspectiva da experiência de um sujeito ético que tenta agir bem ou melhorar, e que, para tal, deve estar racionalmente motivado (SANTOS, 2012: 102). Para Aristóteles, a virtude era uma disposição interiorizada de acção, desejo e sentimento. Tratava-se, pois, de uma disposição intencional que implicava o exercício do juízo de um agente – necessariamente humano –, que envolvia uma razão prática (WILLIAMS, 2017: 55). No seu sentido literal, o termo aretê, que constitui o superlativo substantivado do adjectivo agathon (bom, bem), pode ser traduzido por “excelência”. O conceito de virtude (do grego “aretê”) remete, portanto, in traditio, para a busca de excelência e aplica-se exclusivamente aos humanos. Como exemplos temos as virtudes cardeais (justiça, temperança, prudência e fortaleza) e as virtudes teologais (fé, caridade e esperança). Mas o leque não se esgota, de todo, nestas sete virtudes cristãs.

É frequente ouvir-se que «a melhor virtude do Aprendiz é o silêncio». Não se deverá confundir, todavia, o calar-se ou a renúncia à palavra (que poderá assumir a situação extrema de voto de silêncio), tal como a capacidade de guardar segredo ou reserva (manter o véu do silêncio), com a “ausência de ruído”, o Silêncio. A prudência e a temperança no uso da palavra, que poderão revestir as feições de silêncio, denominar-se “silêncio”, traduzem inequivocamente força e carácter. Apartar-se da tagarelice, de palavreado inoportuno ou, mais grave, indecoroso, ultrapassa a mera ética ao adentra-se na estética: revela bom gosto e beleza. Conseguir renunciar à palavra e guardar segredo implicam intencionalidade, desejo e sentimento de agir bem e, portanto, estas tipologias de silêncio poderão ser categorizadas como virtude(s). Conter, mesurar e até interromper a fala dá lugar ao Silêncio. É este Silêncio, subjacente à palavra falada1 (e simultaneamente sobrejacente), primal e original, que «é a pedra basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo.» É este Silêncio que é o «caminho incontornável para aquilo», e será aquilo (?), «que, sendo inefável, indizível e quiçá inominável2, não pode ser expresso por palavras.» É este Silêncio que não é uma virtude, porque extravasa o humano; está fora de qualquer intencionalidade, está para além do bem e do mal.

Não ignoramos que as virtudes, numa espécie de pareidolia, podem ser atribuídas a animais, a órgãos do corpo ou mesmo a utensílios, para designar as boas qualidades que possam ter. No caso de artefactos, trata-se da qualidade da coisa que, no âmbito do seu uso pelo homem, melhor preenche a sua função habitual. Saliente-se, contudo, que, nestes cenários, continuamos na lógica das virtudes associadas, directa ou indirectamente, ao ser humano e por isso numa ética evidentemente antropocêntrica. O naturalismo, o romantismo e o transcendentalismo, que viriam a emergir na ética ambiental, na ecologia profunda (deep ecology) e na ecosofia, vieram superar essas abordagens homocêntricas ao atribuírem valor intrínseco aos seres não humanos – vivos e “inanimados” – e até aos ecossistemas, numa abrangência “holotrópica”3 que aparentemente remete para um regresso às vivências dos povos primevos mas que, na verdade, aponta a novos horizontes futuros: o Homem abrir-se ao Todo, num “antropologismo holístico”4. Um pleno retorno ao natural (e ao sobrenatural?), a partir da condição de anthropos, reconhecendo valor intrínseco a todos os seres mas sem lhes atribuir estatuto moral porque «no fundo da floresta vagueia um urso temível, feroz e ameaçador, mas isento de culpa.» (DOSTOIEVSKI, 1981: 238). Como referiu esse Grande Colosso que foi Agostinho da Silva: «estamos tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (SILVA, 1990: 69). Como expressou Teixeira de Pascoes, e que reescrevo de memória, «para lá desta região média em que habitamos, um outro plano se esboça ignotamente pressentido. (…) O homem é mais do que ele próprio. E esse mais é o silêncio profundo da sua alma, que sabe tudo e não diz nada: um silêncio igual ao das montanhas.» Comecemos pelo abandono ostensivo do discurso para ocupar a morada do silêncio5. Silenciar-se para ouvir a voz do Silêncio6


Nicholas Roerich - Christ in the Desert (1933)


NOTAS

1. É evidente que a existência primordial da linguagem (“língua”) se dá na fala. A linguagem não é uma gramática (de gramma techne: “rabiscos entrançados”), é um sopro de ar (SNYDER, 2018: 95). Distinção já assinalada pelo linguístico suíço Ferdinand de Saussure (no séc. XIX), e que tanto intrigou Merleau-Ponty, entre la parole (o acto concreto da fala) e la langue (enquanto sistema de regras terminológicas, sintácticas e semânticas) (ABRAM, 2007: 85).

2. Aquilo que nas tradições teístas se chama “Deus”, da raiz indo-europeia “dei”, que designa “o que brilha”, a irrupção da luz nas trevas (BORGES, 2015: 24). A linguagem humana não pode definir Deus (ou sequer altas entidades espirituais), mas tem a capacidade de denominar, consciente ou inconscientemente, quando refere “Deus” ou utiliza expressões como “a-deus” ou “se Deus quiser” – o mesmo que oxalá (do árabe Inch’Allāh). Os 99 nomes de Deus (Allāh) mencionados no Alcorão designam os atributos do Ser Supremo. Os cabalistas apontam 72 nomes de Deus (BONEWITS, 1971: 78), com base nos versículos 19, 20 e 21 do Capítulo 14 do Êxodo:   Shemhamphorasch, o conjunto de nomes de 3 letras, do alfabeto hebraico, formados a partir do desdobramento do Tetragrammaton YHVH (יהוה).

3. Aqui “holotrópico” (termo cunhado pelo psicólogo transpessoal Stanislav Grof) é utilizado no sentido literal de uma progressão rumo ao Todo (holos). Já no século XIII, São Francisco de Assis tentou desviar o cristianismo dos pressupostos antropocêntricos dominantes, num posicionamento biocêntrico resultante de tendências, mais antigas, animistas: propôs «uma democracia de todas as criaturas de Deus» (DEVALL & SESSIONS, 2004: 65). Destacamos igualmente a visão religiosa de Spinoza (séc. XVII) – da unidade e divindade da Natureza – que influenciou um diversificado conjunto de pensadores “holísticos”. Algumas das principais figuras do movimento romântico europeu (Goethe, Coleridge, Wordsworth e Shelley), os transcendentalistas americanos (Emerson, Thoreau e Muir), entre outros: George Santayana, Bertrand Russel, Albert Einstein, Robinson Jeffers, John Wetlesen, Arne Naess, etc. (ibid.: 261).

4. “Antropologismo holístico” como forma de estar/pensar ancorada no Homem, enquanto ponto de partida, mas que se abre (descentralizando) ao todo. Pese embora estarmos conscientes da critica do antropologismo, mormente pela fenomenologia de Husserl: as estruturas transcendentais, descritas depois da redução fenomenológica, não são as do ente intramundano chamado “homem” e não estão ligadas à sociedade, à cultura, linguagem ou alma. Daí abrir-se espaço para a imaginação de uma consciência sem homem ou sem alma (DERRIDA in CARVALHO, 2008: 29).

5. O caminho iniciático prevê uma única reversão: a demanda pragmática do silêncio, a passagem para «o País do Silêncio» (BOYER, 2011b: 102). «A primeira função das sociedades iniciáticas consiste em acompanhar o demandador até à zona de Silêncio, onde se desenvolve o Ser e a Consciência não-dual» (ibid.: 114-115). O domínio pessoal é eminentemente especulativo e a operatividade só pode ser posta em prática «na Zona de Silêncio, no não-condicionado» (BOYER, 2017: 35). A obra literária de Rémi Boyer confere uma especial importância ao Silêncio,  posicionamento reiteradamente manifestado nas diversas comunicações a que tive o grato privilégio de assistir: (1) “Martinismo – História, Símbolos e Práticas da Via Martinista”, realizada no dia 2 de Maio de 2015, na Casa do Fauno (Sintra), juntamente com o palestrante José Manuel Anes; (2) “Despertar, Tradição e Iniciação”, no âmbito do relançamento do livro A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência, que decorreu, no dia 24 de Abril de 2017, na AMORC (Lisboa); (3) “A Iniciação Maçónica no Século XXI”, proferida, no dia 12 de Abril de 2018, no Museu Maçónico do GOL (Grande Oriente Lusitano).

6. Calar-se e, em altos níveis de atenção ou em atenção plena, colocar-se à escuta: para ouvir a paradoxal voz do silêncio. 


BIBLIOGRAFIA

ABRAM, David (2007). A Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2

BONEWITS, Philip Emmons Isaac (1971). Real Magic – An introdutory treatise on the basic principles of yellow magic. New York: Coward, MacCann & Geoghegan, pp. 236.

BORGES, Paulo (2015). O Coração da Vida – visão, meditação, transformação integral.  Paço de Arcos: Edições Mahatma, pp. 198. ISBN 978-989-8522-60-3

BOYER, Rémi (2011). O Discurso de Sintra. Sintra: Zéfiro e Arcano Zero, pp. 170. ISBN 978-989-677-076-1

BOYER, Rémi (2017). A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência. Sintra: Zéfiro, pp. 168. ISBN 978-989-677-148-5

CARVALHO (2008), Júlia Diniz. Fenomenologia e antropologismo: a morte do homem entre Foucault e Derrida. Em Construção – Arquivos de Epistemologia Histórica e Estudos de Ciência, nº 3, p. 21-34. Disponível em:

https://www.e-publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/emconstrucao/article/viewFile/34352/24267

DEVALL, Bill & SESSIONS, George (2004). Ecologia Profunda – Dar prioridade à natureza na nossa vida. Águas Santas, pp. 290. ISBN 972-8870-01-9

DOSTOIEVSKI, Fiódor (1981). Os Irmãos Karamazov. Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 602.

SANTOS, José Manuel (2012). Introdução à Ética. São João de Ver: Sistema Solar, pp. 304. ISBN 978-989-8618-12-2

SILVA, Agostinho da (2019). Sete Cartas a um Jovem Filósofo. Lisboa: Ulmeiro, pp. 120. ISBN 978-972-706-217-1

SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem. Lisboa: Antígona, 2018, pp. 256. ISBN 978-972-608-326-9

WILLIAMS, Bernard (2017). A Ética e os Limites da Filosofia. São João de Ver: Sistema Solar, pp. 264. ISBN 978-989-8834-47-8


ADENDA: O silêncio é um dos temas a que regressamos por diversas vezes no blogue Pedestris e ao qual regressaremos certamente em novas intervenções, tendo em conta de que se trata, antes de mais, de uma boa prática em actividades de ar livre, mas ultrapassa, em muito, essa faceta...

Sem comentários:

Enviar um comentário