sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A Obra ao Negro

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)


«Para encontrar a minha imagem na verónica que o instante, como um toureiro, colhe.»
Júlio Pomar in Da Cegueira dos Pintores (1986: 24)


A Vida Errante

«Tu, nullis angustiis coercitus, pro tuo arbitrio, in cuiús manu te posui, tibi illam praefinies.»
(Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas mãos te coloquei, te defines a ti próprio.)
Pico de Mirândola (Oratio de Hominis Dignitate)

Enquanto viajava, assaltou-me uma ideia: à força de rondar pelos caminhos do espaço, de saber, Aqui, que Acolá me esperava, se bem que ainda encontrasse distante, decidi, à minha maneira, aventurar-me pelos caminhos do tempo. Acabar com o fosso que existe entre o vaticínio categórico do calculador de eclipses e o diagnóstico já mais titubeante do médico, arriscar-me, com a máxima precaução, a escorar uma mediante a outra, a premonição e a conjectura, traçar, nesse continente que ainda não atingimos, a carta dos oceanos e a das terras já imersas… É esta tentativa que me põe exausto.
[YOURCENAR, 2009: 129]

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Mar. 2016)


A Vida Imóvel

«Obscurum per obscurius
Ignotum per ignotius.»
(Buscar o obscuro e o desconhecido
Através do que ainda é mais obscuro e desconhecido.)
Divisa Alquímica

SOLVE ET COAGULA… Ele sabia o que significava essa ruptura das ideias, esse vácuo no seio das coisas. Jovem clérigo, lera Nicolau Flamel, a descrição do opus nigrum, essa tentativa de calcinação e dissolução das formas, que é a parte mais difícil da Grande Obra. Dom Blas de Vela muitas vezes lhe afirmara solenemente que a operação se realizaria por si mesma, quer se quisesse quer não, quando todas as condições se cumprissem. O clérigo avidamente meditara naqueles adágios que lhe pareciam tirados de não se sabe que estranho ou talvez verídico engrimanço. Essa separação alquímica, tão perigosa que os filósofos herméticos só se lhe referiam por meias palavras, tão árdua que muitas vidas se haviam gasto em vão para a conseguir, tinha-a ele antigamente tomado por uma fácil rebelião. Rejeitando, depois, esses desconexos devaneios tão velhos como a ilusão humana, não guardando de seus mestres alquimistas mais do que algumas receitas pragmáticas, optara por dissolver e coagular a matéria no sentido de uma experimentação operada no corpo das coisas. Doravante, convergiam os dois ramos da parábola; cumprira-se a mors philosophica: o operador, queimado pelos ácidos da experiência, era, a um tempo, sujeito e objecto, frágil alambique e negro precipitado no fundo do receptáculo. A experiência, que se julgara poder confinar à oficina, estendera-se a tudo. Poder-se-ia daí concluir que as fases subsequentes da aventura alquímica fossem algo mais do que sonho e que também ele viria alguma vez a conhecer a pureza ascética da Obra ao Branco, seguida do triunfo conjugado do espírito e dos sentidos, que é característica da Obra ao Rubro? Do mais fundo da brecha nascia uma Quimera. Dizia Sim por audácia, da mesma forma que também por audácia outrora dissera Não. Estacava, de súbito, puxando violentamente as rédeas de si mesmo. A primeira fase da Obra exigira-lhe a vida inteira. Faltavam-lhe tempo e forças para poder ir mais longe, isto admitindo que houvesse realmente um caminho e que, por esse caminho, um homem pudesse passar.
[YOURCENAR, 2009: 185]

A demanda do espírito processava-se em círculo. Dantes, em Basileia, e em vários outros lugares, passara por idêntica escuridão. As mesmas verdades haviam sido reaprendidas várias vezes. Mas a experiência era cumulativa: o passo, com o tempo, tornava-se cada vez mais seguro; o olhar ganhava maior alcance no meio de certas trevas; o espírito constava, pelo menos, certas e determinadas leis. Como um homem que sobe, ou quiçá desce a falda de uma montanha, assim ele se elevava ou se enterrava sem sair do mesmo sítio; pelo menos, em cada curva, um novo abismo se erguia, ora à direita, ora à esquerda. A ascensão só podia medir-se pelo ar que ia rareando e pelos diferentes cumes que apontavam por detrás daqueles que já pareciam haver ocultado o horizonte. Era, porém, falsa a noção de ascensão ou de descida: os astros tanto brilhavam em cima como em baixo; e ele tanto se achava no fundo do abismo como no centro. O abismo estava, ao mesmo tempo, para além da esfera celeste e no interior da cúpula óssea. Tudo parecia processar-se no extremo limite de uma série infinita de curvas fechadas.
[YOURCENAR, 2009: 188-189]

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)


A prisão

«Meglio è morir all’anima gentile
Che suportar inevitabil danno
Che lo farria cambiar animo e stile.»
(Mais vale morrer com nobreza de ânimo
Que suportar o mal inevitável
Que lhe roubasse virtude e estilo…)
Juliano de Médicis

Caíra a noite, sem que ele soubesse se seria em si próprio, se na sua cela: tudo era noite. Também a noite se movimentava: as trevas afastavam-se para darem lugar a outras trevas, abismo sobre abismo, espesso negrume sobre espesso negrume. Mas esse negro, tão diverso daquele que com os olhos se apercebe, fremia de cores nascidas, por assim dizer, da sua própria ausência; o negro tornava-se verde lívido, depois branco puro; o branco pálido transmutava-se em ouro rubro, sem contudo perder a negrura original, tal como o lampejo dos astros e da aurora boreal cintila no meio daquilo que, apesar de tudo, é noite escura.
[YOURCENAR, 2009: 333-334]

© Jorge Maia


Referência bibliográfica
YOURCENAR, Marguerite (1968). A Obra ao Negro. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2009, 9ª edição, pp. 350. ISBN 978-972-20-3760-0

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Sint(r)a o lugar da luz

«O destino de alguém nunca é um lugar,
mas sim uma nova forma de ver as coisas.»
Henry Miller

Acrílico sobre madeira: Lima de Freitas  © A Montanha da Lua (1988)

A religião cristã possui três locais considerados santos que, durante séculos, foram alvo de atracção por parte de crentes: Santiago de Compostela, Roma e Jerusalém. (…) O impulso que conduz, na modernidade, a empreender uma peregrinação a pé, nem que seja uma vez na vida, até um lugar longínquo, quantas vezes fora do seu país de origem, não resulta certamente do fenómeno costumaz a que se convencionou chamar «turismo». Este não será mais do que uma tentativa, algo diletante e superficial, de colmatar uma necessidade profunda que se traduz na viagem. Mas, sendo a viagem o meio, o que interessa nestas «matérias de fé» são os fins: «conhecer-nos a nós próprios como parte integrante de um todo de dimensões muito mais vastas do que as da nossa casa, aldeia, cidade ou país».
[CUIÇA, 2015: 31-32]

A geografia do sagrado justificará, per si, o caminhar na paisagem (exterior) em busca de fortes energias telúricas e genius loci, todavia quantas vezes para afinal descobrir, no fechar (ou abrir?) do círculo, que a luz sempre se encontrou no exacto lugar de partida e de chegada: o sacro templo do ser (interior). 


Referência bibliográfica
CUIÇA, Pedro. Passo a Passo – Manual de Caminhada e Trekking. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, pp. 312. ISBN 978-989-626-721-6

© Danielle Barlow (2013)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Light

A (in)sustentável leveza do ser!...


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A Luz(ia)

Fiat Lux. Atitude é... altitude.



domingo, 11 de dezembro de 2016

A Montanha


Podemos, portanto, distribuir as actividades humanas em função dos paradigmas do sagrado e do profano: são profanas as actividades que tendem ao estabelecimento de uma homogeneidade do mundo, excluindo todo o elemento heterogéneo; são sagradas as actividades que transgridem os interditos estabelecidos, introduzindo um gasto improdutivo. A passagem da continuidade à descontinuidade, assegurada por um sacrifício, constitui a passagem do profano ao sagrado.
A ciência do heterogéneo – a que Bataille chamou heterologia – consiste precisamente no conhecimento do absolutamente Outro, do que se revela no extremo da experiência limite.
[António Guerreiro in BATAILLE, 1987: 4]

A experiência extática, tal como ele a pensa, é a conquista de uma soberania, isto é, o acesso a um cume em que o homem se furta definitivamente à sua funcionalidade e se defronta com o impossível, até ao ponto em que Deus se converte na possibilidade mais extrema do homem. A mística de que aqui se trata é a aniquilação extática do teológico, mas também do teleológico. Como observou Derrida, a ateologia de Bataille é também uma a-teleologia e uma anescatologia. Mística que não anula a factibilidade da existência para desembocar numa plenitude absolutamente transcendente, mas uma mística da imanência que afirma a própria condição da imanência como impossibilidade radical de plenitude.
[António Guerreiro in BATAILLE, 1987: 6]

E todavia...



Referência bibliográfica
BATAILLE, Georges. O Aleluia. Lisboa: Quatro Elementos Editora, 1987, pp. 40. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

As vias


«Claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira.»
[Agostinho da Silva in BORGES: 2006: 192]

Cremos, todavia, que esta visão e experiência surge, em Agostinho, como o aprofundamento e o culminar da sua prática de uma determinada via, o catolicismo cristão, embora mediante uma leitura e sensibilidade paraclética que tende a extravasar das fronteiras ortodoxas, não sendo porventura possível se desde o início procurasse caminhar por todas as vias, o que seria uma forma de não seguir afinal por nenhuma. Sendo um ponto de chegada, torna-se difícil que esta experiência e visão seja um ponto de partida, o que implicaria a capacidade, certamente rara, embora não impossível, de desde o início alguém se colocar (ou se reconhecer) no cume da montanha – mediante uma experiência real e não meramente mental, que geralmente não produz senão a atitude diletante e indiferente da maioria dos intelectuais em relação à verdadeira espiritualidade –, livre disso que condiciona o haver caminho, ou seja, a subjectividade cindida da plenitude. Neste sentido, embora relativas à luz do seu fim último, e cada vez mais relativizáveis à medida que por elas se avança, as diversas vias, religiosas ou não, revelam-se afinal de uma importância fundamental para aqueles que as percorrem e enquanto as percorrem. Sobretudo a via a cada um mais adequada para chegar ao fim último, pois é ela, e não por outra, que melhor pode caminhar, e mais rapidamente – o que não quer dizer facilmente, mas antes o inverso, pois só as dificuldades obrigam à superação e transformação de si na qual consiste o avanço –, em direcção a ele. Com efeito, não tendo a capacidade de voar de imediato para o cume da montanha, ou seja, de se reconhecer desde sempre lá, nunca aí chegará aquele que desde o início queira percorrer todas as veredas que até ele conduzem. Não o vemos senão dando alguns passos numa, para logo voltar atrás, ensaiar caminho por outra e assim sucessivamente. Ou então abandonando uma após algum progresso nela para, sem regressar atrás, tentar mudar-se para outra, o que implica o risco de se extraviar no denso matagal que as separa, sem encontrar outra vereda ou sem saber se, mesmo encontrando-a, nela lhe será de algum proveito o progresso feito na anterior, pois diferentes são, em função das diferenças de cada indivíduo, quer as características e exigências de cada caminho, quer as qualidades que ao percorrer cada um deles, embora convergentes para um mesmo fim, se desenvolvem. Claro que existirão muitas e dignas excepções, mas o quadro mais provável para alguém que deste modo se comporte é o de desperdiçar o precioso e limitado tempo de uma vida humana a andar em círculos, ou de um lado para outro, subindo e descendo sem se afastar muito do sopé da montanha, a entrar e a sair das diferentes veredas, ou ainda perdido a meio da subida, sem saber por que vereda continuar ou, abandonada uma, sem conseguir encontrar outra ou nela se integrar, até que o cansaço, a frustração, o desalento, o tédio, a descrença, o desespero ou a morte o surpreendam e lhe retirem toda a possibilidade de chegar ao cume, realizando-se plenamente. Pelo contrário, aquele que firme e decididamente, após averiguar qual a vereda que melhor lhe corresponde, e reconhecendo a equivalência de todas as demais como as mais correspondentes a outros, por ela caminhe sem distracção nem hesitação, quanto mais por ela ascender mais vai verificar e sentir a aproximação e convergência de todas as demais, e de todos os outros caminhantes, para o mesmo destino: o cume da montanha em cujo limiar todos finalmente em júbilo se encontram, dialogam, comungam ou mesmo, um passo adiante, fundem, descobrindo que um só é o sentido de vias múltiplas. O que não implica que todas as vias num dado momento e lugar sócio-geográfico e sócio-cultural existentes ou disponíveis conduzam exactamente, e com a mesma rapidez e proveito, ao cume, tornando-se legítima e desejável a mudança para os caminhantes que constatem a limitação, para si e para as suas aspirações, de algumas delas, por exemplo por se deterem no que consideram cume, e não é senão um patamar da ascensão ou por não permitirem desenvolver todas as qualidades que a partir de um determinado estádio da subida se requerem. O que, todavia, nos parece que mais evidente e necessário se torna em níveis superiores do caminho e não tanto nos seus passos iniciais.
Se Agostinho predominantemente nos fala a partir desse cume onde todas as vias autênticas, mais exigentes e profundas convergem, ou do seu vivido vislumbre, o que supõe um estádio avançado no caminho por si percorrido, parece-nos fundamental enfatizar estas observações para obviar uma leitura da sua visão conducente ao que nos parece mais uma das tendências e equívocos fundamentais de uma certa e suposta “espiritualidade” contemporânea, conhecida como New Age (sem negar o que nela corresponde a uma autêntica busca de espiritualidade mais livre dos limites dogmáticos e confessionais em que tendem a enquistar-se as religiões tradicionais), em que muitas vezes não se vende senão todo o tipo de “cocktails” espirituais, inventados à medida da imaginação do criador e da curiosidade ou necessidade do consumidor, quimérica via que procura conciliar o que haja de mais agradável e excitante, para o ego que deseja sempre resultados rápidos, por meios fáceis e agradáveis, em todas as vias tradicionais. Vias essas, ao contrário, de eficácia comprovada por haverem sido o, ou nascido do, percurso de inúmeros homens que por elas foram até ao cume, verdadeiramente se realizaram e assim se converteram em guias, nelas, para os demais, mostrando-lhes o caminho e as suas exigências e precavendo-os dos riscos e desvios. Seguir uma via fabricada à medida das necessidades de gratificação e promoção do ego, e não em função da necessidade de o superar, sem outro mestre senão ele mesmo, não pode, naturalmente, mais do que levar ao seu reforço do aprisionamento nele do ser mais profundo.
[BORGES: 2006: 192-194]








Referência bibliográfica
BORGES, Paulo. Tempo de Ser Deus – A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208. ISBN 978-972-780-177-0

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cantaminhar o mundo

«Eu
O canto
Caminho aqui»
[canto modoc in ABRAM, 2007: 92]

Hoje é fácil para a maior parte de nós, vivendo no meio das construções em constante mutação da civilização literata e tecnológica, conceber e até sentir, por detrás de todas as recorrências sazonais no terreno sensível, a inexorável arremetida de um tempo linear e irreversível. Mas para as culturas sem escrita simplesmente não existe um ponto de observação de onde ver e anotar as subtis mutações e variações nos infindáveis ciclos da natureza. As mudanças que são observadas são frequentemente assumidas como fazendo parte de outros ciclos mais vastos. Porque a trajectória global do mundo visível e tangível – o mundo desvendado à humanidade pelos nossos sentidos sem a ajuda de instrumentos – é circular.
(…)
A curvatura do tempo nas culturas orais é muito difícil de articular na página, porque desafia a linearidade da linha impressa. Todavia envolver-nos completamente, sensorialmente, com a terra circundante é descobrir-nos num mundo de ciclos dentro de ciclos.
(…)
Mircea Eliade, na sua importante e enigmática obra Cosmos e História: O Mito do Eterno Retorno, mostrou tão bem como qualquer outro estudioso em que medida os povos indígenas habitam um tempo cíclico periodicamente regenerado através da repetição ritual de acontecimentos míticos. Dentro das culturas “arcaicas” (o termo é de Eliade), cada actividade efectiva – desde caçar, pescar e colher plantas a conquistar um parceiro sexual, construir um lar ou dar à luz – é uma recorrência de um acontecimento arquétipo posto em cena por poderes ancestrais ou totémicos nos tempos míticos.
(…)
Executando essas actividades com cuidado, empregando exactamente as mesmas frases e os mesmos gestos revelado no Tempo Mítico, o indivíduo converte-se realmente no ser ancestral e assim rejuvenesce a ordem emergente do mundo (tal como o homem da tribu pintupi na Deambulação, caminhando nas pegadas do seu antepassado totem, está a cantar o mundo, trazendo-o de volta à existência).
[ABRAM, 2007: 190-191]

Paulo Cabrita © Mandala (Serra de Sintra, 7/12/2015)


Referência bibliográfica
ABRAM, David. A Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2

Cantar a terra

[ABRAM, 2007: 175]

O que aconteceu em tempos volta a acontecer muitas outras vezes. O sonho, a vida da imaginação da própria terra, deve ser continuamente renovado, e um homem aborígene, quando caminha ao longo do trilho do Sonho do seu Antepassado, cantando a região para trazê-la à visibilidade, converte-se virtualmente no Antepassado viajante e, assim, a terra com história nasce de novo.
Esta identificação, este sangrar do Tempo dos Sonhos para o aqui e agora, acontece não apenas na Deambulação solitária, mas também, e em especial, durante os rituais colectivos efectuados em sítios especiais do Sonho, rituais em que os encontros e aventuras dos Antepassados nesses locais não só são cantados, mas também postos em cena pelos anciãos.
[ABRAM, 2007: 174]

Pintura: Ray Partridge  © "Uluru - Ceremonial Treks"
Foto: Pedro Cuiça © Messner Mountain Museum Firmian (Tirol do Sul, 14/ Out. 2016)


Referência bibliográfica
ABRAM, David. A Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Cavaleiros a pé

Renoir © Trilho na Floresta (1875)

Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos, na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido.

Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento, outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido. Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era – creio – o fim de um dia, ou de qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na floresta simbólica e verdadeira.

Que casas, que deveres, que amores havíamos largado – nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos ou chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que escombravam adormeciam de tristeza a floresta.

Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.

Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anónimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora – a floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
28/11/1932
[PESSOA, 1986: 160-161]

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)

Referência bibliográfica
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego, por Bernardo Soares - 1ª Parte. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986, p.318

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)

O caminho...

Lima de Freitas © Pessoa e "O caminho da serpente" (1995)

O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilíneas) dos mundos e de Deus.
Fernando Pessoa

Lima de Freitas © Pessoa e "O caminho da serpente" (1995)

domingo, 4 de dezembro de 2016

A estética

A estética do ritmo... «the rhythmical creation of beauty» (Edgar Allan Poe).



Pedro Cuiça © Pico (Açores, Jan./2016)


(…) encontrar-se, no meio da finitude, em unidade com o infinito e ser eterno em cada instante.
Friedrich Schleiermacher

Fantasia criadora que simultaneamente nos dá o tempo e a eternidade, esta nos transmitindo pelos meios especiais e temporais do «continuum» físico e dela olhando, sem para trás ou para diante, o próprio fenómeno da criação. Aqui teria fundamentalmente sua raiz de ser a Liturgia, em todos os seus aspectos; e aqui se prenderia a base, igualmente litúrgica e levítica, de todo o verdadeiro artista.
Agostinho da Silva in As Aproximações (Relógio d'Água,1990: 41)

O Ritmo

A fechar a trilogia da (minha!) geografia do sagrado: Arrábida (antes de ontem), Sintra (ontem) e Mont'santo (hoje)...

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)

Na Caminhada Chi Kung (Chi Kung Walking) costumamos explorar a (re)ligação à Natureza – ao meio envolvente e ao si – com base em elevados níveis de atenção à visão, ao tacto, à audição, ao olfacto e, quando possível, ao paladar. A tentativa de atenção plena a cada um dos sentidos é feita com base numa caminhada lenta e de cadência constante. De certo modo trata-se de uma iniciação à «ciência do concreto», sem sugestões ou persuasões, assente na tentativa de vivência desperta dos sentidos. 
Hoje fizemos um up-grade da “coisa” ao explorar, desde logo, a vivência intensificada e simultânea de vários sentidos (com especial incidência na visão, audição e olfacto), juntamente com a implementação de diversificados ritmos, desde o estar parado, a cadências lentas e acelerações harmoniosas. A fenomenologia do ritmo faz parte da vivência do corpo, do meio envolvente, do todo: a marcha, a respiração, os batimentos cardíacos, as oscilações da vegetação ou a chuva que marcou todo o percurso.

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)

Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)


«Il n’y a pas de movement sans rythme.»

«There is no movement without rhythm.»