quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Monte da Lua...



... um ambiente de montanha (sagrada), às portas de Lisboa, para desfrutar a pé ;-)

Volta à Ibéria

Hélder Cabral Vieira e José da Mota Amado encontrar-se-ão neste momento na província de Múrcia (Espanha), muito provavelmente, a andar… a pé. Isto porque estão em plena concretização do seu projecto “Perímetro Ibérico – 5000 km a Pé”. A iniciativa consiste em darem a volta a pé à Península Ibérica, palmilhando literalmente 5000 quilómetros em 180 dias. A iniciativa teve início no dia 4 de Janeiro passado, com partida da Trafaria (península de Setúbal), neste momento os caminheiros ultrapassaram a distância de 1500 quilómetros e prevê-se a sua chegada, ao ponto de partida, na segunda semana de Julho.
Esses pedestrianistas do CIMO – Clube Ibérico de Montanhismo e Orientação – estão altamente motivados e prosseguem a bom ritmo rumo à meta proposta. Hélder Vieira já vinha embalado tendo em conta que no ano passado concretizou a volta a Portugal a pé.
Estas actividades pedestres constituem excelentes exemplos de que ser reformado não significa estar parado, não ter nada para fazer e muito menos “estar arrumado”. Estes são também excelentes exemplos de que não é preciso “ser endinheirado” para concretizar objectivos, designadamente conhecer outras paragens a pé!. Só por esses dois aspectos estas já seriam iniciativas de louvar.
Para mais informações consulte o site do CIMO. Para seguir o projecto “Perímetro Ibérico – 5000 km a Pé” consulte a sua página no Face


Livre

Li no Verão passado, melhor seria dizer “devorei”, de uma assentada, Livre – Uma história de autodescoberta, sobrevivência e coragem (Editorial Presença, 2013). Foi uma longa caminhada galgada em dois intensos e empolgantes dias de profícua bibliofagia. É certo que as caminhadas e as corridas diárias junto ao mar e no interior algarvio seria justificação suficiente para me abrir o apetite mas, na verdade, o “entusiasmo” deveu-se à surpreendente qualidade da obra em causa. Livre não se trata de mais uma descrição de uma pretensa aventura ou experiência pedestre num famoso percurso de longo curso ou, muito menos, de mais um exemplo de “literatura light” acerca dos atractivos de viajar… a pé!
Cheryl Strayed dá-nos a conhecer a sua problemática vida pessoal, sem grandes rodeios ou efeitos de “dourador de pílula”, até à sua decisão de, aos 26 anos, deixar tudo para trás e empreender o PCT. Sim o mítico Pacific Crest Trail, sozinha, sem experiência e com escassos recursos! Depois segue-se a narrativa desse acto de libertação que consistiu em perfazer 1700 quilómetros a pé desde o deserto de Mojave, ao longo da Califórnia e do Oregon, até ao estado de Washington. Acto de libertação porque, mais do que uma longa viagem exploratória ou de conquista exterior através de magníficas paisagens e ambientes selvagens, essa narrativa revela-nos a intensa luta interior contra inúmeros medos e variados obstáculos que ao serem transpostos se transmutaram numa autêntica descoberta do self. Segundo Cheryl Strayed “a natureza selvagem possuía uma clareza” que a incluía e foi essa clareza e inclusão que terão sido determinantes nessa descoberta. Livre é também por isso um agradecimento, uma forma de dizer miigwech (obrigado na língua ojibwe), e uma poderosa mensagem ou incentivo, como queiram: continuar a andar…
Livre – Uma história de autodescoberta, sobrevivência e coragem (Wild – A journey from Lost to Found no original) foi elaborado mais de uma década depois dos acontecimentos, no entanto a escrita, apesar de cuidada e amadurecida, não perdeu a intensidade ou o vigor. O filme estará aí a chegar um dia destes e, claro, não irei perder a oportunidade de visualizar Livre, sendo certo que essa transposição para o cinema não irá substituir a leitura da obra… Não percam o livro.

 “Tinha apenas que ver com a maneira como nos sentimos na natureza selvagem, com o reconhecimento da sensação de caminharmos ao longo de quilómetros sem nenhum outro propósito que não seja testemunharmos a acumulação de árvores, campinas, montanhas e desertos, ribeiros e rochas, rios e extensões de ervas, de nascentes e pores do Sol. A experiência era poderosa e primordial. Naquele momento, tive a impressão de que aquela sempre fora a sensação experimentada por um ser humano na natureza selvagem, e, enquanto esta existisse, a nossa sensação seria sempre essa.

Cheryl Strayed

Agora estamos nas montanhas
e elas estão em nós…

John Muir


ADENDA (10/07/2014): E o filme está aí a chegar...



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Abismos

Por abismos sem fim, vou caminhando...
E o mais profundo abismo é o alto céu.
E que vertigens sempre sinto, quando
Me inclino sobre a luz que amanheceu!

É um abismo a oração que vou rezando.
É um mar sem fundo a flor que renasceu...
Nas palavras que vou pronunciando,
Cada ideia é tão alta como o céu!

Sobre abismos, caminho dia a dia...
Das suas negras trevas se irradia
Uma outra escuridão ainda maior...

Que a mim me diz, nas horas em que cismo,
Que é um abismo junto d´outro abismo,
Meu coração ao pé do seu amor!...

(Teixeira de Pascoaes)


Éticas da Terra

A atribuição de valores intrínsecos aos seres vivos ou até aos inanimados foi algo perfeitamente natural entre os homens (e mulheres) primitivos, tal como ainda hoje entre tribos consideradas “selvagens” que vivem da caça e da recolecção (Lévi-Strauss, 1962). Segundo o biólogo Edward Wilson (2007): “De acordo com o registo arqueológico, perdemo-nos da natureza com o início da civilização, há aproximadamente 10 mil anos. Esse salto quântico deslumbrou-nos com uma ilusão de liberdade em relação ao mundo que nos tinha gerado. Alimentou a convicção de que o espírito humano pode ser moldado em algo de novo para se adaptar a alterações no ambiente e na cultura e, consequentemente, os calendários da história dessincronizaram-se.
(…) A civilização foi adquirida com a traição da natureza. A revolução neolítica, que compreendeu a invenção da agricultura e das povoações, alimentou-se da generosidade da natureza. (…) O depauperamento da fauna e da flora da Terra foi um preço aceitável até aos séculos mais recentes, quando a natureza parecia ser virtualmente infinita e inimiga dos exploradores e dos pioneiros.
(…) Entretanto, a moderna revolução técnico-científica, incluindo especialmente o grande salto em frente dado pela tecnologia da informação baseada nos computadores, traiu a natureza pela segunda vez, ao fomentar a convicção de que os casulos de vida material urbana e suburbana são suficientes para a realização humana. Este erro é particularmente grave. A natureza humana é mais ampla e mais profunda do que o artifício material de qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens encontram-se profundamente arreigadas no mundo natural, por canais de desenvolvimento mental ainda maioritariamente desconhecidos.
A evolução desta forma traçada por Wilson reflecte claramente o afastamento do Homem face à Natureza e, simultaneamente, a crescente importância das concepções antropocêntricas, tal como das perpectivas utilitárias e dos valores extrínsecos associados. Neste contexto, não será de admirar que os valores intrínsecos da Natureza, os direitos dos animais e, mais ainda, das plantas ou das rochas sejam encarados com bastante controvérsia no seio da sociedade moderna/pós-moderna.
Na actualidade, o valor instrumental é evidente “porque se relaciona com a nossa vontade, interesses e desejos” (VAZ & DELFINO, 2010), já o valor intrínseco (aquele que uma determinada coisa tem devido à sua própria natureza) é mais difícil de compreender por mentalidades vincadamente antropocêntricas.
A atribuição de valores intrínsecos a elementos biológicos ou geológicos é com frequência objecto de controvérsia, porque esse tipo de valores remetem para conceitos filosóficos, éticos e, inclusivamente, políticos que não são partilhados pela generalidade das populações ocidentais. Estes conceitos remetem inevitavelmente para diversas questões: O porquê de deverem ser preservados os meios selvagens per se? Ou o porquê das paisagens ou rochas deverem ser preservados pelo seu valor intrínseco?
A evidente insustentabilidade do estilo de vida moderno e, posteriormente, pós-moderno, baseado no consumismo e, depois, no híper-consumismo (para empregar a expressão cunhada pelo filósofo Gilles Lipovetsky, 2004) tornou evidente em determinadas correntes de pensamento a necessidade de uma outra relação/posicionamento face à Natureza.
A aurora dessas novas formas de pensar é traduzida de forma cabal em A Sand County Almanac. Esta obra, publicada pela primeira vez em 1949, só viria a revelar o seu enorme alcance com a expansão, a partir dos anos 60 do século XX, da consciência ecológica moderna nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo. Este livro é hoje talvez o mais discutido clássico do "ecologismo" e o pilar de uma muito recente ética da Terra, ética ambiental ou ética ecológica.
Para José Carlos Costa Marques, o editor da obra em português (Pensar como uma Montanha, 2008), é surpreendente que neste livro, de mais de 200 páginas na edição original, o conteúdo mais conhecido, citado e debatido se resuma quase ao último capítulo (The Land Ethic), somente cerca da nona parte da totalidade da obra. E neste, sobretudo a sua última secção (The Outlook). E nessas duas páginas e meia destaca-se sobretudo um parágrafo, o sexto dessa secção: oito linhas! E destas, sobretudo, as três últimas: A thing is right when it tends to preserve the integrity, stability, and beauty of the biotic community. It is wrong when it tends otherwise.
A leitura integral de Pensar como uma Montanha (A Sand County Almanac) é imprescindível para entender o pensamento de Aldo leopold, tendo em conta que a mesma possui uma estrutura que funciona de forma gradativa, como se o leitor fosse levado pela mão numa lição progressiva de "educação ambiental" - melhor seria dizer de (re)integração na Natureza -, até ao culminar, no final da obra, nos elevados conceitos da designada "ética da Terra". E, nesse contexto, não será de admirar o que o filósofo Viriato Soromenho-Marques afirma no prefácio da mesma: “O que nós devemos a Aldo Leopold é uma radical mudança de olhar sobre as relações entre o Homem e a Natureza.” Retomando a inspiração de outras duas grandes figuras do pensamento norte-americano do século XIX, os transcendentalistas Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, “Leopold oferece aos seus leitores uma visão subtil e delicada da frágil teia dos equilíbrios naturais, criticando, de uma forma pedagógica e sem arrogância moral ou científica, o modo desastrado e destruidor de que se revestem a maioria das intervenções humanas sobre os ecossistemas, em nome de um duvidoso conceito de “progresso”. Leopold soube ver mais fundo que a esmagadora maioria dos filósofos do seu tempo: uma “Ética da Terra” (Land Ethics)”.
Na ética da Terra de Leopold está incluso praticamente tudo aquilo que hoje estamos a (re)aprender quando queremos transformar o conceito de desenvolvimento sustentável em algo realmente efectivo: o respeito pelos valores intrínsecos dos ecossistemas; a capacidade de apreciação do sagrado e sublime que se manifesta na Natureza (Soromenho-Marques in LEOPOLD, 2008).
Neste contexto, será igualmente importante salientar que os textos do alemão Wilhelm Heinrich Riehl já prenunciavam a crítica das justificações utilitárias, portanto antropocentristas, que estão associadas a uma visão da ecologia numa perspectiva “ambientalista” (FERRY, 1993). Este autor, dos anos 30 do século XX, reivindicava o direito das árvores e dos rochedos: “Durante séculos repetiram-nos sem cessar que era um progresso defender o direito das terras cultivadas. Mas hoje em dia o progresso está, na realidade, em reivindicar os direitos da natureza selvagem ao lado da dos campos. E não só dos terrenos arborizados, mas também das dunas de areia, dos pântanos, das charnecas, dos recifes e dos glaciares!
Para a generalidade dos homens e mulheres com um estilo de vida ocidental será simplesmente insensato tratar os animais, seres da natureza e não da liberdade, como pessoas jurídicas e, mais ainda, os seres inanimados como as paisagens, os afloramentos ou os minerais. Consideram óbvio que só os humanos sejam “dignos de um processo” jurídico. A Natureza tornou-se letra morta! Em sentido próprio: ela não nos diz nada porque deixámos há muito – pelo menos desde Descartes – de lhe atribuir uma alma e de a crer habitada por forças ocultas (FERRY, 1993). A separação do Homem e da Natureza, pela qual o humanismo moderno foi levado a atribuir apenas ao primeiro a qualidade de pessoa moral e jurídica, ou sujeito de direitos e valores, não terá sido contudo senão um longo parênteses, em vias de voltar a fechar-se. O exemplo disso serão as novas correntes de pensamento que curiosamente se aproximam dos nossos ancestrais caçadores e recolectores.
A título de exemplo, refira-se o artigo de Christopher D. Stone publicado, em 1972, na conceituada Southern California Law Review: Should trees have Standing? Toward legal rights for natural objects. As teses de “ecologia radical” do professor Stone a favor de uma Natureza titular de direitos tem um grande interesse no contexto da evolução do pensamento a que temos vindo a fazer referência. O seu primeiro argumento consiste em recordar o raciocínio, ritual nesta literatura dita “ecologista”, segundo o qual o tempo dos direitos da Natureza teria chegado, após o das crianças, das mulheres, dos negros, dos índios ou até mesmo dos embriões. Em suma, trata-se de sugerir que o que parecia “impensável” numa época, em tantos aspectos próxima da nossa, e que se tornou numa evidência hoje em dia. Só é pena o professor Stone se ter esquecido dos elementos geológicos!
O debate sobre o direito das árvores ou dos rochedos, para além da sua aparente estranheza, trata-se de saber se o Homem é o único sujeito de direito e detentor de valores, ou se, pelo contrário, aquilo que hoje se chama a “biosfera”, a “geosfera” ou a “ecosfera”, e que outrora se designava por “cosmos”, também é passível detentor de direitos e valores intrínsecos. O homem não seria neste caso, sob qualquer ponto de vista – ético, jurídico ou ontológico –, senão mais um elemento entre outros no seio da Natureza (FERRY, 1993).
É esta visão do mundo – ecocêntrica – ainda de certo modo inédita que Bill Devall, na sequência do filósofo norueguês Arne Naess, se propõe designar por deep ecology (ecologia profunda). Segundo uma terminologia já clássica nas universidades americanas, deve-se opor a “ecologia profunda” (deeep ecology), “ecocêntrica” ou “biocêntrica”, à “ecologia superficial” (shallow ecology), ou “ambientalista”, fundada no velho antropocentrismo.
O reconhecimento ético dos seres inanimados tende a tornar-se o critério do sucesso ou do insucesso de uma tal desconstrução da modernidade, como sugere Roberick Nash (in FERRY, 1993), outro teórico do movimento deep ecology:

Os rochedos têm direitos? Se chegar o dia em que esta questão não mais se apresente como ridícula para um grande número de nós, estaremos então na via de uma mudança de sistema de valores que tornará, porventura, possíveis medidas susceptíveis de pôr termo à crise ecológica. Esperemos que ainda se esteja a tempo.
(Pedro Cuiça, 2013)


Vrsaki Breg (Sérvia)