segunda-feira, 10 de abril de 2023

Com-paixão

 

© Pedro Cuiça (8/04/2023)


Os seguidores de [Isaac] Luria [cabalista do século XVI] inventaram ritos que lhes possibilitaram participar no divino desconforto que penetrava todo o mundo. Ficavam acordados à noite clamando por Deus como amantes, lamentando a dor da separação que jaz no coração de tanta angústia humana. Eles faziam grandes caminhadas no campo, vagueando como a Sakhinah* no exílio. Porém, Luria era inflexível: não devia um abandono à autocomplacência. Os ritos da meia-noite terminavam sempre de madrugada com uma meditação sobre a reunião de Sekhinah com a Divindade. E, insistia Luria, os judeus que tinham sofrido o ostracismo deviam comportar-se compassivamente: havia penitências por prejudicar ou humilhar os outros.

 

O Caminho a Seguir

(…) Talvez devêssemos sentir-nos mais perturbados, passando algum tempo a refletir todos os dias sobre a dor que está a ser infligida tanto aos nossos companheiros humanos como ao meio ambiente, considerando as vidas desfeitas no Iémen ou na Somália devastadas pela guerra, a pobreza generalizada em África e a situação desesperada dos islâmicos Rohingya e do povo da Ucrânia. Quase todos os dias, emigrantes arriscam a morte cruzando o canal da Mancha em embarcações inadequadas, esperando encontrar refúgio no Reino Unido, e alguns afogam-se ao tentar. Porque não nos afligimos mais pela vergonhosa desigualdade em algumas das nossas cidades ricas? Londres, onde vivo, é uma das mais abastadas do mundo, contudo estima-se que um quarto da população viva na pobreza. Nos Estados Unidos, há uma disparidade mais ampla entre ricos e pobres do que em qualquer outra nação desenvolvida, e ao longo das últimas décadas esse fosso de riqueza mais do que duplicou.

(…) A religião convoca-nos para sermos dela [a dor] sempre conscientes de um modo que não nos deprima ou esmague, mas que suscite compaixão, a capacidade de sentir com o outro – mesmo, como Jesus nos recordou, com os nossos inimigos. Porque a compaixão nos liberta da prisão do nosso ego, permite-nos experienciar a alteridade – a santidade – do que chamamos Deus.

Mas, é claro, o sofrimento que testemunhamos devia afligir-nos a todos, sejam quais forem as nossas crenças ou a sua ausência. Precisamos de cismar nestas imagens de dor e permitir que nos perturbem. Somente assim poderemos suscitar a compaixão – a capacidade de «sentir com» outros – que inspira ação construtiva.

(pp. 93-96)

 

LIVRO:

ARMSTRONG, Karen. 2023. Natureza Sagrada - Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural. Lisboa: Temas & Debates.



*Sekhinah trata-se da Presença, a que mais próximo poderemos chegar da perceção/apreensão do Divino na Terra.

NOTA do autor do Blogue: 

E porque se passou mais um período de comemorações pascais, mas poderia ter sido a época natalícia ou qualquer outro dia, não devemos olvidar o Espírito… O Espírito do Tempo, do Temp(l)o que é chegado, aqui e agora. A Shekhinah, para muitos cristãos, ter-se-á manifestado em diversas passagens do Novo Testamento, com especial destaque para o dia de Pentecostes, no qual se verificou a descida do Espírito Santo: o Tempo dos Lírios...


VER:

Espírito Santo: O Tempo dos Lírios

É (d)o tempo...

D'o Tempo

D'o Espírito


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