sexta-feira, 26 de abril de 2019

Motricidade transcendente


A Ciência da Motricidade Humana (CMH), por mim teorizada, foi apresentada, publicamente, nas minhas provas de doutoramento, em 1986. Porque estuda o movimento intencional da transcendência, é uma ciência social e humana. Aliás, a transcendência é uma dimensão específica humana, inédita nas demais criaturas, já que se afirma como ruptura e como projecto como criação de um mundo novo. [SÉRGIO, 2016: 158]

A reforma permanente (na escola, no lazer, no treino, nas competições, nas federações, nas associações e no clubismo em geral) que deverá ser levada a cabo por agentes de prática diligente e rigorosa, mormente os licenciados pelos cursos universitários de motricidade humana e desporto. Reforma permanente ainda porque há-de ser a Escola, através de uma séria educação lúdica e desportiva, o primeiro espaço do lazer desportivo e até de uma certa competição, onde pela transcendência o «agente do desporto» tome consciência de que não é objecto da história, mas sujeito criador da própria história. Na escola não há lugar à «especialização precoce», mas ao cultivo daquelas virtudes que preparem a criança, não para o conformismo mas para «incoformar-se», à alta competição, sem escrúpulos, da vida hodierna. Não vivemos em pleno hipercapitalismo, onde o individualismo, e exclusão, o progresso linear e quantitativo imperam? Desporto que, no Lazer, na Saúde, na Educação, no Trabalho, na Alta Competição (ou Alto Rendimento) apareça como o corpo em ato, movimentando-se intencionalmente, de acordo com uma ética e uma estética da existência. O movimento é sinal e fator de vida. Praticá-lo, nomeadamente como ginástica, ou jogo, ou desporto, é contribuir para a saúde e o bem-estar da pessoa e da sociedade. A preservação natural, os espaços verdes e um urbanismo arquitetado em critérios ecológicos deverão ter-se também em conta, no desenvolvimento desportivo. A cidade civilizou o cidadão, mas as megalópolis afastam-no da natureza e do seu semelhante. As percentagens assustadoras das doenças mentais, nervosas e cárdio-circulatórias traduzem um custo real. [SÉRGIO, 2017: 33-34]
(…) Do que venho de escrever se infere que os licenciados em Motricidade Humana, ou em Desporto, podem fazer sua, tanto no treino, na competição, ou na escola, a paráfrase, que eu proponho, das palavras de Kant e Hans Jonas: «Pratica desporto de tal maneira que o resultado da tua prática promova e fomente a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a Terra». [SÉRGIO, 2017: 44]
(…) O modelo, no desporto hodierno, ainda intimamente ligado à cultura do ter e não à cultura do ser. Ora, é o homem que se é que triunfa no treinador (ou no jogador, ou no dirigente) que se pode ser. No desporto entendido como movimento intencional, ele é mais escola do que circo – nele, vive-se num «fieri» (tornar-se) permanente. [SÉRGIO, 2017: 53]

Urge ainda clarificar a noção de movimento humano. Segundo esta filosofia da encarnação, fica reforçada a convicção que o corpo tem uma intencionalidade dinâmica, que se dirige para as coisas e para os homens, com os quais compartilha o Mundo. O movimento humano oferece uma certa significação perceptiva, forma com os fenómenos exteriores um sistema tão intimamente relacionado que a percepção se compreende no deslocamento dos órgãos perceptivos, encontrando neles, não uma explicação expressa, mas pelo menos o motivo das transformações que acontecem na vida. Existe um movimento intencional do corpo, diferente do simples movimento no espaço, e que tange ao caminho e abertura para as coisas, para os outros. [SÉRGIO, 2018: 103]

© Pedro Cuiça:  o Prof. Dr. Manuel Sérgio (à esquerda) e o treinador Fonseca e Costa (à direita). Foi um grato privilégio receber os ensinamentos do Prof. Manuel Sérgio (e, claro, do Prof. Fonseca e Costa) de viva-voz, no seminário “Debater a Motricidade Humana” que decorreu no Dia da Actividade Física (6 de Abril de 2019), na Biblioteca Municipal de Odivelas. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SÉRGIO, Manuel. Desporto em Palavras. Porto: Edições Afrontamento/Plano Nacional de Ética no Desporto, 2016, pp. 176. ISBN978-972-36-1453-4
SÉRGIO, Manuel. Para um Desporto do Futuro. Lisboa: Instituto Português do Desporto e Juventude, 2017, pp. 64. ISBN978-972-36-1587-6
SÉRGIO, Manuel. Para uma Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Nova Veja, 2018, pp. 208. ISBN 978-989-750-076-3

Sem comentários:

Enviar um comentário