sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Pelo caminho que houver


«Menino, pois, vem Jesus viver com o poeta (…). Vem viver para a aldeia, exactamente como Alberto Caeiro, porque o ar da cidade se encontra demasiado corrompido pela acumulação de metafísicas, não sendo o próprio urbanismo, provavelmente, mais do que a consequência de uma falta de naturalidade; e vem viver não para ser um pregador da bondade e da justiça, ambas daninhas por serem abstracções ou sobre abstracções terem seu alicerce, mas para chapinhar nas poças de água, limpar o nariz ao braço direito e atrever-se, até, a outras mais ousadas artes. Ligada a esta, a de ser uma criança natural, tem ainda outra missão, a de ensinar o poeta a olhar para as coisas, que na flor existem ou que existem nas pedras quando devagar as tomamos e lentamente as vamos deixando ser. É ele, pegando Alberto Caeiro pela mão, que o leva de passeio, enquanto a outra mão do Menino se dá a tudo o que existe, e vão os três andando, não pelo caminho que há e em que demasiado é patente a obra e a determinação dos que pensam, mas pelo caminho que houver; o que, por ser, existir. Tão bem se dão os dois, que até nessa relação de humano a humano foi possível desaparecer o pensar: não pensam um no outro; juntos são, por um acordo íntimo.» 
[SILVA, 1996: 60-62]


«Sem se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que já mais se constituía em Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado, podendo tratar a sociedade portuguesa do seu tempo com o desembaraço, o desdém e a agressividade com que a tratavam – apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades, como a de propor Mensagem a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma doença de ambiente, e o cansaço permanente de Álvaro de Campos. O que os abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.» [SILVA, 1996: 81-82]

Pedro Cuiça © Martinho da Arcada (Lisboa, 4/02/2017)

«Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar em nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.» [SILVA, 1996: 87]

PC ©


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SILVA, Agostinho da. Um Fernando Pessoa. Lisboa: Guimarães Editores, 1996, pp. 196. ISBN 972-665-345-2


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