quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O Tentador...

...e/ou aquele que tenta?


Escalar altas montanhas a fim de tentar o Tentador?
(NIETZSCHE, 1985: 29)


A ÁRVORE NA MONTANHA
Zaratustra tinha notado que um mancebo o evitava. E uma tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que dominam a cidade denominada «Vaca Malhada», eis que encontrou no seu caminho esse mancebo sentado ao pé de uma árvore, dirigindo ao vale um olhar cansado. Zaratustra enlaçou a árvore a que o mancebo se encostava e disse:
«Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos, não seria capaz.
Mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe apraz. As mãos invisíveis são hábeis entre todas em nos dobrar e açoitar à sua vontade».
A tais palavras o mancebo levantou-se estupefacto e exclamou: «Estou a ouvir Zaratustra, e era precisamente nele que estava a pensar».
Zaratustra replicou: «Que te leva a ter medo? O que sucede à árvore sucede ao homem.
Quanto mais aspira a subir para as alturas e para a luz, mais as suas raízes aspiram a mergulhar na terra, nas trevas, nas profunduras – no mal».
«Sim, no mal – exclamou o mancebo. Como é possível teres descoberto a minha alma?»
Zaratustra sorriu e disse: «Há almas que nunca descobriremos, a não ser que as tenhamos inventado».
«Sim, no mal!» – repetiu o mancebo – «Disseste a verdade Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que aspiro a elevar-me às alturas e já ninguém tem confiança em mim. A que se deve isto?
Mudo depressa demais. O meu Eu de hoje contradiz o meu Eu de ontem. Com frequência salto degraus quando subo – e nenhum degrau mo perdoa.
Quando chego acima, acho-me sempre só. Ninguém me dirige a palavra, a solidão glacial obriga-me a tiritar. O que venho eu então procurar nas alturas?
O meu desejo e o meu desprezo crescem a par; quanto mais me elevo, mais desprezo o que se eleva.  Que vai ele procurar nas alturas?
Como me envergonho de subir aos tropeções! Como troço do meu fôlego ofegante! Como odeio aquele que tem asas! Como me sinto cansado de ter subido tão alto!»
Aqui o mancebo calou-se. E Zaratustra, olhando atento a árvore a que estavam encostados, assim lhe falou:
«Esta árvore cresceu solitária na montanha; ultrapassou no seu crescimento homens e animais.
E se quisesse falar, ninguém havia que a pudesse compreender, tanto cresceu.
Agora espera, espera sem cessar – mas o quê? Habita demasiado perto da morada das nuvens, decerto espera o raio que não tardará a vir».
Quando Zaratustra acabava de dizer estas palavras, o mancebo dominado por uma violenta agitação exclamou: «É verdade, Zaratustra, dizes bem. Ao procurar as alturas, aspirava à minha queda, e tu és o raio que esperava. Olha: que sou eu desde que tu nos apareceste? Foi a inveja que te tenho que me destruiu!» Assim falou o mancebo, chorando amargamente. Zaratustra, cingindo-o com o seu braço, levou-o consigo.
E depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim:
«Tenho o coração dilacerado. Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos o perigo em que estás.
Ainda não és livre, procuras ainda a verdade. Foi esta procura que te fez passar noites em claro, e exasperou a tua consciência.
Queres escalar as livres alturas, a tua alma aspira às estrelas. Mas os teus maus instintos também têm sede de liberdade.
Os teus cães selvagens querem libertar-te; ladram de alegria na tua cave enquanto o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
Tu és ainda, como verifico, um prisioneiro que sonha com a liberdade. Ai! alma destes presos torna-se prudente, mas também astuta e má.
Até o espírito libertado precisa ainda de se purificar. Guarda ainda sobre si a sombra da sua prisão e o cheiro a bafio; é preciso ainda que a sua vista se purifique.
É certo, conheço o perigo em que estás. Mas conjuro-te, em nome do meu amor e da minha esperança, não repudies nem o teu amor nem a tua esperança!
Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem os que te querem mal e te olham com maus olhos. Fica sabendo que o homem nobre é uma pedra de toque no caminho de todos os outros.
Até para os bons o nobre é um obstáculo, e até quando lhe chamam bom, é tão sòmente uma maneira de o pôr de parte.
O homem nobre quer criar alguma coisa nova e uma nova virtude. O bom deseja as velhas coisas, e conservar tudo o que é velho.
E o perigo para o nobre, contudo, não é tornar-se bom, mas insolente, trocista e destruidor.
Ah! quantos nobres corações assim conheci, que perderam a sua mais elevada esperança! E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
Desde então têm vivido uma vida de minguadas aspirações, feita de alegrias breves, sem ver mais longe que de um dia para outro.
«O espírito é também voluptuosidade», diziam. E quebravam as asas do seu espírito. Agora rastejam e maculam tudo o que consomem.
Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são apenas gozadores. O herói é para eles aflição e espanto.
Mas, em nome do meu amor e da minha esperança, eu te conjuro: não repudies o herói que há em ti! Venera piedosamente a tua mais elevada esperança!»

Assim falava Zaratustra.
(NIETZSCHE, 1985: 47-50)


© da net (?)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores, 1985, pp. 376.




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