quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Através da paisagem


Lentamente, o meu cérebro começou a reajustar-se a espaços que não utilizava havia meses. Durante muito tempo, tinha vivido na universidade, em bibliotecas e salas de aula, de cenho franzido a olhar para ecrãs, a corrigir trabalhos, a tentar encontrar referências académicas. Era um outro tipo de perseguição. Ali eu era um animal diferente. Alguma vez viram um veado a sair do seu esconderijo? Dão um passo, param e ficam imóveis, com o nariz no ar, a olhar e a farejar. Um frémito nervoso poderá percorrer-lhe os flancos. E depois, tranquilizados por se sentirem em segurança, saem do meio dos arbustos para irem pastar. Naquela manhã, senti-me como o veado. Não que estivesse a farejar o ar ou parada com medo – mas tal como ele, estava dominada por modos muito antigos e emocionais de me deslocar através de uma paisagem, a experimentar formas de atenção e de comportamento que estavam para além do controlo consciente. Qualquer coisa dentro de mim comandava os meus passos sem que eu tivesse grande consciência disso. Talvez fossem milhões de anos de evolução, talvez fosse intuição, mas na minha busca de açores sinto-me tensa quando caminho ou estou imóvel ao sol, dou comigo a dirigir-me inconscientemente para zonas de luz, ou escapar-me para zonas de sombra estreitas e frias ao longo dos vastos intervalos entre os renques de pinheiros. Encolho-me se oiço o chamamento de um gaio, ou o grito de alarme repetido e zangado de um corvo. Estes dois sons podiam significar Alerta, humano! ou Alerta, açor! E naquela manhã eu estava a tentar encontrar um ocultando o outro. Essas antigas intuições fantasmagóricas que há milénios ligam corpo e espírito tinham-se afirmado, impondo a sua vontade, fazendo-me sentir incomodada sob a luz intensa do sol, inquieta no lado errado de uma cumeeira, de certo modo obrigada a caminhar sobre uma elevação coberta de ervas descoradas para chegar a qualquer coisa do outro lado que acabaria por se revelar um lago.
[MACDONALD, 2015: 14]


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MACDONALD, Helen. A de Açor. Alfragide: Lua de Papel, 2015, pp. 344. ISBN 978-989-23-3394-6

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